A crença na meritocracia não é apenas falsa: é ruim para você

A meritocracia se tornou um ideal social. Os políticos de todo o espectro ideológico retornam continuamente ao tema de que as recompensas da vida – dinheiro, poder, empregos, ingresso na universidade – devem ser distribuídas de acordo com a habilidade e o esforço

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As Minas de Bauxita (1942), por Julius Woeltz. Crédito: Library of Congress

A metáfora mais comum é a “level playing field”, uma expressão inglesa que pode ser traduzida como “condições equitativas”, no qual os competidores podem subir a uma posição que se encaixa em seu próprio mérito. Conceitualmente e moralmente, a meritocracia é apresentada como oposta a certos sistemas, como a aristocracia hereditária, em que a posição social de uma pessoa é determinada pela sorte do nascimento. Sob a meritocracia, riqueza e vantagem são justas recompensas baseadas no mérito, em vez da sorte fortuita de eventos externos.

A maioria das pessoas não apenas pensa que o mundo deve ser administrado meritocraticamente, mas acredita que isso é meritocrático. No Reino Unido, 84% dos entrevistados da pesquisa sobre Atitudes Sociais Britânicas, de 2009, afirmaram que o trabalho duro é “essencial” ou “muito importante” quando se trata de progresso. Em 2016, o Instituto Brookings constatou que 69% dos americanos acreditam que as pessoas são recompensadas pela inteligência e habilidade. Os entrevistados dos dois países acreditam que fatores externos, como sorte e nascimento em uma família rica, são muito menos importantes. Embora esses pensamentos sejam mais pronunciados nesses dois países, eles aparecem em todo mundo.

Embora amplamente difundida no mundo, a crença de que mérito em vez da sorte determina sucesso ou fracasso é comprovadamente falsa. Isso não é menos importante, porque o próprio mérito é, em grande parte, resultado de sorte. O talento e a capacidade para um determinado esforço, às vezes chamado de “garra“, dependem muito das características genéticas e educação.

Isso sem mencionar as circunstâncias fortuitas que figuram em cada história de sucesso. Em seu livro Sucesso & Sorte (2016), o economista norte-americano Robert Frank relata os planos e coincidências que levaram a ascensão astronômica de Bill Gates, fundador da Microsoft, bem como o próprio sucesso de Frank como acadêmico. A sorte intervém concedendo mérito às pessoas e, novamente, fornecendo circunstâncias nas quais o mérito pode se traduzir em sucesso. No entanto, ele demonstra que a ligação entre mérito e resultado é tênue e indireta, na melhor das hipóteses.

De acordo com Robert Frank, isso se torna evidente quando o sucesso alcançado é grandioso em um cenário competitivo. Certamente, existem programadores tão habilidosos quanto Bill Gates, no entanto, eles falharam em se tornarem as pessoas mais ricas da Terra. Em contextos competitivos, muitos têm mérito, mas poucos conseguem. O que separa os dois é a sorte.

Além de ser falsa, há um crescente número de pesquisas em psicologia e neurociência indicando que acreditar na meritocracia torna as pessoas mais egoístas, menos autocríticas e ainda mais propensas a agir de maneira discriminatória. A meritocracia não está apenas errada: ela é ruim.

Há um experimento comum em laboratórios de psicologia chamado “Jogo do Ultimato”, no qual um primeiro participante (proponente) recebe uma quantia em dinheiro e é instruído a propor uma divisão entre ele e outra pessoa (respondente), que pode aceitar ou rejeitar a oferta. Se o respondente recusar a oferta, nenhum dos dois participantes ganha. Este teste foi replicado milhares de vezes e, geralmente, o proponente oferece uma divisão relativamente uniforme. Se o valor a ser compartilhado for de 100 dólares, a maioria das ofertas ficará entre US$ 40 e US$ 50.

Em uma variação desse experimento, é observado que quando um indivíduo acredita que é o mais habilidoso, ele apresentará uma postura mais egoísta. Em uma pesquisa realizada na Beijing Normal University, os participantes realizaram um teste falso de habilidades antes de fazerem as ofertas no jogo do ultimato. Os integrantes que foram (falsamente) levados a acreditar que “venceram” reivindicaram mais para si mesmos do que aqueles que não realizaram o teste de habilidade. Outros estudos confirmam essa pesquisa. Os economistas Aldo Rustichini, da Universidade de Minesota, e Alexandre Vostroknutov, da Universidade de Maastricht, na Holanda, descobriram que as pessoas que faziam testes de habilidades tinham muito menos probabilidade de defender uma redistribuição de prêmios do que aquelas haviam se envolvido em jogos de azar. Simplesmente ter em mente a ideia de habilidade é o suficiente para tornar as pessoas mais tolerantes com resultados desiguais. Mesmo isso sendo verdadeiro para todos os que participaram, o efeito foi muito mais pronunciado entre os “vencedores”.

Sob outra óptica, algumas pesquisas sobre a questão da gratidão indicaram que lembrar o papel da sorte aumenta a generosidade. Frank cita um estudo em que simplesmente ao solicitar para os participantes se lembrarem dos fatores externos (sorte, ajuda de outras pessoas) que contribuíram para os sucessos conquistados na vida, os tornavam mais propensos a doar à caridade do que aqueles que foram convidados se lembrarem dos fatores internos (esforço, habilidade).

Talvez o mais perturbador, manter a meritocracia como um valor parece promover um comportamento discriminatório. O estudioso da administração Emilio Castilla, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e o sociólogo Stephen Bernard, da Universidade de Indiana, estudaram tentativas de implementar práticas meritocráticas, como remuneração, baseadas em desempenho em empresas privadas. Eles perceberam que, em empresas que explicitamente consideravam a meritocracia como um valor central, os gerentes atribuíam maiores recompensas a funcionários do sexo masculino do que às mulheres com avaliações de desempenho idênticas. Essa preferência desapareceu onde a meritocracia não foi explicitamente adotada como um valor.

Isso é surpreendente, porque a imparcialidade é o cerne do apelo moral da meritocracia. A “igualdade de condições” tem como objetivo evitar as desigualdades injustas com base em gênero, raça e similares. No entanto, Castilla e Bernard constataram que, ironicamente, as tentativas de implementar a meritocracia levam aos tipos de desigualdades que ela pretende eliminar. Eles sugerem que esse “paradoxo da meritocracia” ocorre porque a adoção explícita da meritocracia como um valor convence os sujeitos de sua boa fé moral. Satisfeitos por serem justos, tornam-se menos inclinados a examinar seu próprio comportamento em busca de sinais de preconceito.

A meritocracia é uma crença falsa e não muito benigna. Como em qualquer ideologia, parte de sua atração é justificar o status quo, explicando porque as pessoas pertencem ao lugar em que estão na ordem social. É um princípio psicológico bem estabelecido que as pessoas preferem acreditar que o mundo é justo.

No entanto, além da legitimação, a meritocracia também oferece bajulação. Onde o sucesso é determinado pelo mérito, cada vitória pode ser vista como um reflexo da própria virtude e valor. A meritocracia é o mais autocongratulatório dos princípios de distribuição. Sua alquimia ideológica transmuta propriedade em elogio, desigualdade material em superioridade pessoal. Licencia os ricos e poderosos para se verem como gênios produtivos. Embora este efeito seja mais espetacular entre a elite, quase qualquer conquista pode ser vista através da perspectiva meritocrática. Ao terminar o ensino médio, o sucesso artístico ou simplesmente ter dinheiro pode ser visto como evidência de talento e esforço. Da mesma forma, as falhas mundanas se tornaram sinais de defeitos pessoais, fornecendo uma razão pela qual aqueles que estão na base hierárquica social permanecem lá.

É por isso que debates sobre até que ponto os indivíduos são “feitos por si mesmos” e sobre os efeitos de várias formas de “privilégios” podem ficar tão temperamentais. Esses argumentos não são só sobre quem consegue o quê; trata-se de quanto “crédito” as pessoas podem receber pelo que têm, sobre como seus sucessos lhes permitem acreditar sobre suas qualidades internas. É por isso que, na perspectiva meritocrática, a própria noção de que o sucesso pessoal é o resultado de “sorte” é um insulto. Reconhecer a influência de fatores externos parece subestimar ou negar a existência de mérito individual.

Apesar da garantia moral e da bajulação pessoal que a meritocracia oferece aos bem-sucedidos, ela deve ser abandonada tanto como uma crença sobre como o mundo funciona quanto como um ideal social geral. Ela é falsa e acreditar nela encoraja o egoísmo, a discriminação e a indiferença frente a situação dos não afortunados.

Por: Douglas Ferrari, Universo Racionalista

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