A esquerda anti-woke brasileira pode ver a mão da CIA em questões raciais, mas não muito mais

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A propaganda é poderosa, mas não é onipotente.

Bruna Frascolla

Assim como no mundo anglófono, há inúmeros livros no Brasil que visam explicar por que o wokeismo é ruim. E, assim como no mundo anglófono, aqueles que tendem a fazê-lo são da direita neocon. Pelo seu canto, o wokeismo é ruim porque ameaça o Ocidente – que é tacitamente identificado com o liberalismo político. Esta é uma manobra bastante política, pois o nome “Ocidente” remonta à divisão entre Ocidente e Oriente do Império Romano, cujas partes, na Idade Média, eram divididas entre a Igreja de Roma, no Ocidente, e a Igreja de Constantinopla, no Oriente. Ambas as igrejas, a Oriental e a Ocidental, são antiliberais. Assim, o que os neocons entendem por Ocidente é uma ideologia política que surgiu primeiro em um país protestante, a Inglaterra, e depois surgiu, com características universalistas e anticlericais, na França católica.

Ambas as tradições liberais são estranhas ao Brasil, então a defesa do Ocidente aqui é estrangeirismo. Claro, nossa lei, nossa religião e nossa língua vêm de Roma, e isso nos torna, em um sentido literal, ocidentais. Mas pertencemos ao que os ideólogos do Ocidente chamam de Idade das Trevas, porque não fomos libertados pela Reforma, nem pelo Iluminismo. Pelo contrário: fomos liderados pelo QG intelectual da Contra-Reforma, o Colégio de Coimbra. Somos muito obscuros para sermos ocidentais no sentido em que essa palavra é usada por seus ideólogos.

No mundo de língua inglesa, há esquerdistas que criticam o wokeismo, ou, como preferem chamar aqui, o identitarismo (da política de identidade). Essas críticas tendem a se apoiar ou no lado francês do liberalismo, condenando o particularismo das lutas sobre raça, gênero, etc., ou no marxismo ortodoxo, que só admite o particularismo de classe e, portanto, considera que as lutas de identidade desviam o foco da questão real.

No Brasil, depois de uma tempestade de traduções de críticas neocons ao wokeismo, finalmente, uma editora liberal de direita lançou Identitarismo (LVM, 2024), de Antonio Risério, um esquerdista democrata que foi trotskista na última ditadura militar e aderiu à Contracultura. Como Risério aponta, a esquerda de seus velhos tempos não era democrática. E isso era perfeitamente normal, já que a democracia no Brasil surgiu pela primeira vez com a República do Café com Leite (1898-1930) (que é amplamente considerada corrupta até a medula), e depois retornou com o fim da Segunda Guerra Mundial por pressão dos EUA. Isso é incontroverso, e Risério comenta que “naquela época, os Estados Unidos seguraram a democracia, causando, entre outras coisas, a redemocratização brasileira, com o fim da ditadura de Vargas” (p. 270). Mais tarde, durante a Guerra Fria, o Brasil sofreria um golpe militar apoiado pelos EUA com o suposto objetivo de salvar a democracia de uma iminente revolução comunista; e então, em 1988, novamente sob pressão dos EUA, o Brasil instauraria a Nova República, democrática e liberal. Durante a Nova República, o Brasil teve até um presidente que trabalhava para uma ONG financiada pela Fundação Ford, Fernando Henrique Cardoso. E a alternativa ao partido de Fernando Henrique era o partido de Lula, que tinha entre seus fundadores pessoas como Florestan Fernandes, outro intelectual financiado pela Fundação Ford.

Como de costume, Risério faz uma análise muito boa de Florestan e da Fundação Ford e destrói suas alegações contra o Brasil. Desta vez, porém, ele destacou uma tese de doutorado de 2011 que não recebeu a atenção que merecia, e só virou livro em 2019, lançado por uma editora paga. O livro é A questão negra: A Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970) (1950-1970) (Appris, 2019), de Wanderson da Silva Chaves. Com base nessa obra, Risério dá detalhes de como a Nova Esquerda foi um projeto da CIA, que usou a Fundação Ford como fachada , a fim de fomentar uma esquerda antissoviética após a morte de Stalin. A questão em questão era a propaganda soviética baseada em problemas raciais dos EUA, e Florestan afirmava que o racismo brasileiro era pior que o racismo americano.

Quanto ao roteiro do livro, Risério ataca o identitarismo por todos os ângulos: acusa-o de ser contrário ao Ocidente, contrário ao Iluminismo e contrário aos interesses da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, repete sua crítica habitual de que o identitarismo é contrário ao Brasil, e também afirma que ele é contrário aos valores pregados pela Contracultura, da qual se originou. Essa última crítica costuma ser feita pela esquerda francesa; veja a reação deles ao Me Too.

Acho que a novidade mais interessante do livro é a tentativa de documentar a chegada do wokeismo ao Brasil. Pelo que Risério apurou, o wokeismo foi sentido primeiro em universidades que receberam dinheiro da Fundação Ford. No entanto, para o público mais amplo, o wokeismo surgiu na internet em 2014, quando fóruns sobre temas tão diversos quanto ateísmo e direitos dos animais foram inundados com slogans como “quando o oprimido fala, o opressor fica em silêncio”. Como aprendemos com Risério, pessoas de esquerda antipetistas, que compartilham dessa impressão, levantam a possibilidade de o PT estar por trás do identitarismo. Seria uma forma de cooptar a sociedade civil que se revoltou em junho de 2013 (quando houve uma série de manifestações sem pauta definida, e das quais surgiu a Nova Direita como força política organizada via redes sociais). Mas, como o wokeismo é global, ele deve ter uma causa global, e 2014 é o ano que marca o início da guerra na Ucrânia.

Não creio, porém, que a visão geral do fenômeno oferecida por Risério seja coerente, pois ele idealiza o passado da Contracultura (que é uma criação da CIA), ao mesmo tempo em que critica o identitarismo (que é outra criação da CIA). O identitarismo, exportado pelos EUA, deve ser criticado para que possamos manter a democracia, que é uma exportação dos EUA. A queixa, no final, é que temos um imperialismo ruim e deveríamos ter um imperialismo bom.

Uma coisa que me incomoda na escrita dos liberais de esquerda é a suposição tácita de que certas escolhas eleitorais são praticamente um crime. O voto em Trump, Orbán, Meloni e Fico recebe esse tratamento na obra de Risério. Mas ele vai além: os EUA não conseguem mais manter a democracia no mundo e nem mesmo em casa (pois podem eleger Trump) e é por isso que “tempos sombrios” estão chegando. “Tempos sombrios”, diz ele na p. 272, “são sofridos hoje na Rússia de Putin, no Irã dos aiatolás, na China de Xi Jinping, no Afeganistão do Talibã. E as sociedades democráticas do Ocidente não estão a salvo de uma imersão aterrorizante na mais escura escuridão”.

Vamos pegar o exemplo mais óbvio, que é o Irã. Eu não gostaria de viver como uma mulher iraniana, e não acredito que homossexuais devam ser executados pela pura satisfação consentida de seus apetites sexuais. Acho incoerente que feministas e gays ocidentais falem mal de seus países de origem e os pintem como o pior lugar do mundo para ser mulher ou gay de acordo com seus próprios valores, enquanto o Irã e a Arábia Saudita seriam infinitamente piores de acordo com esses mesmos valores. Dito isso, o que se deve fazer? Jogar bombas nesses países para forçar as mulheres de lá a usar shorts contra sua vontade? Se eu tivesse nascido no Irã, talvez eu gostaria de usar um véu e ficaria horrorizada com o imperialismo que quisesse me fazer querer usar shorts. Assim como, sendo brasileira, sou contra um imperialismo que queira me forçar a me classificar como membro de uma cultura branca, e tratar a cultura negra como algo separado e distinto da minha própria cultura, tendo eu (assim como Risério) nascido na “Roma Negra” . Qual seria a alternativa a jogar bombas? Encha-o de propaganda paga, exatamente como a Fundação Ford fez nos países dentro de sua zona de influência.

Penso que essa condenação puramente moral dos costumes de povos estrangeiros só faz sentido de uma perspectiva religiosa ou dogmática. E, de fato, a origem da confusão está no liberalismo teológico pouco conhecido, que já discuti aqui no SCF . Em suma, o protestantismo no século XIX enfrentou uma cisão entre fundamentalismo e liberalismo. As elites dos EUA são moral e teologicamente liberais, e é daí que vem sua mania, uma mania que consiste, grosso modo, em jogar bombas ao redor do mundo para que homossexuais possam andar de mãos dadas e mulheres possam fazer abortos após sexo casual.

Com Risério, o leitor aprende que o neorracismo no Brasil é um mal que vem da CIA, que lutou para criar uma esquerda compatível com o capitalismo. Quanto às questões relacionadas à ecologia, ao uso recreativo de drogas, à liberação sexual e à consequente normalização do aborto, tudo isso seria resultado de um movimento positivo e espontâneo da esquerda, que se renovou após a morte de Stálin, e foi – surpreendentemente – a única responsável pela queda da Cortina de Ferro. Lech Walesa, Primavera de Praga, estudantes da Praça da Paz Celestial, tudo isso seria espontâneo. A CIA é muito poderosa, claro, mas suas ações são malignas e, ao que parece, praticamente se limitam a impor aos brasileiros o modelo racial norte-americano.

Na verdade, o dedo da CIA estava em todas as pautas da Nova Esquerda. Acontece que a Nova Esquerda nunca foi tão homogênea quanto é hoje. Dou o exemplo do feminismo. Risério critica as feministas de hoje: “Não existe sexo ‘consensual’ entre um homem e uma mulher. […] Vale dizer, o neofeminismo condena o desejo heterossexual. E isso não tem nada a ver com o feminismo da era contracultural – o feminismo de Betty Friedan, Germaine Greer e Gloria Steinem” (p. 52). Até onde sei, a proponente da ideia de que “PIV = estupro”, ou seja, pênis na vagina é estupro, é a feminista Andrea Dworkin, que estava na universidade fazendo ativismo no auge da Contracultura. E se o lesbianismo político não foi forte nos anos 60, certamente não atingiu seu auge nos anos 2010. Deve ter sido por volta dos anos 1970 e 1980. Quanto a Gloria Steinem, há muito se sabe que ela trabalhou para a CIA . (Quanto ao envolvimento da CIA na exploração de outras culturas e na onda das drogas, resenhei um livro interessante aqui no SCF. )

O que me parece muito estranho sobre intelectuais nostálgicos da Contracultura é que eles a tomam como representante da civilização à qual pertencem. Mas mesmo quando você vem de um país como os EUA, Inglaterra ou França, o fato é que essa nova moralidade, que eles tomam para representar o Ocidente, é um piscar de olhos em sua História. Até mesmo um californiano progressista idoso deveria perceber que seu Ocidente foi, durante a maior parte de sua História, “obscurantista”, porque essa coisa sobre gays de mãos dadas e mulheres fazendo abortos quando elas sentem que isso não tem nem cem anos.

O que tudo isso nos mostra é que a propaganda é poderosa, mas não é onipotente. Não há dinheiro no mundo que faça os brasileiros aceitarem os dogmas de Florestan Fernandes e da Fundação Ford sobre raça. Risério vê isso bem. De uma forma ainda mais radical, no entanto, não há dinheiro no mundo que faça os brasileiros aceitarem a propaganda da Planned Parenthood. É por isso que a Globo não faz novelas com mulheres jovens que fazem aborto, e não por sua adesão tácita a um sistema capitalista contrário à autonomia corporal das mulheres (na verdade, capitalistas como Bezos nos EUA subsidiam abortos de suas funcionárias). O capitalismo importa porque a Globo quer manter sua audiência. Em países de origem católica, muitas vezes é difícil empurrar o aborto. França e Argentina são as exceções.

Encerro este texto ressaltando que o livro é muito informativo e tem valor documental, inclusive sobre a mentalidade de parte da esquerda brasileira que viveu os anos 1960. Para situar o leitor pouco familiarizado com o assunto, explico que quando a onda do wokeismo varreu o Brasil na última década, seus opositores tinham, por assim dizer, uma massa crítica já formada na década anterior. Destaco cinco pessoas e três livros, em ordem cronológica: César Benjamin, Antonio Risério, Peter Fry, Yvonne Maggie e Demétrio Magnoli. César Benjamin, em 2002, denunciou por meio de artigos de revistas os esforços da Fundação Ford para dizer que o Brasil era um país mais racista que os Estados Unidos; Peter Fry e Yvonne Maggie, muito diplomáticos, realizaram uma série de ações contra o estabelecimento de cotas raciais nas universidades públicas, que culminaram em um abaixo-assinado em 2006. Quanto aos livros, em 2005 Antonio Risério publica A utopia brasileira e os Movimentos Negros , que acusa o movimento negro de importar o sistema de categorização racial dos EUA e falsificar a História do Brasil; no mesmo ano, Peter Fry publica A persistência da raça , onde acusa o movimento negro brasileiro de repetir um livro de Perry Anderson que é uma defesa do colonialismo inglês como superior ao colonialismo português; e em 2009 Demétrio Magnoli publica Uma gota de sangue , que é uma história do pensamento racial que denuncia a importantíssima Conferência de Durban e as novas políticas raciais brasileiras. Toda essa autonomia do pensamento brasileiro quanto à questão racial vem de Gilberto Freyre , e também vale destacar Darcy Ribeiro.

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