Aquilo era o retrato do inferno

O drama que se tornou assustadoramente exponencial as consequências da contenda entre dois indivíduos sem caráter, esclerosados, irresponsáveis, ignorantes, avatares de seres humanos degenerados

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© Foto: Domínio público

José Goulão

As palavras que encimam este texto são do já saudoso Fausto Bordalo Dias no épico monólogo de Fernão Mendes Pinto em “o barco vai de saída”; teve evocação recente não apenas pela partida triste de tão emblemático e inconfundível cantor e autor mas também pelo dramático, igualmente arrepiante e nada épico debate entre os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos da América, Joseph Biden, pelo Partido Democrático, e Donald Trump, pelo Partido Republicano; isto é, segundo a praga dos comentaristas que infestam os nossos dias, entre “a esquerda” e “a direita”.

Aquilo era o retrato do inferno, não só porque entre os debatedores vêm o diabo e a escolha, mas também porque estivemos perante a inquietante prestação dos dois supostos chefes do império norte-americano, ou seja, do globalismo, do “mundo civilizado”, os patrões dos nossos políticos “vocacionados” para o poder, os donos das nossas vidas.

Achei prudente aguardar algum tempo antes de abordar o tema, não pela complexidade e a profundidade do conteúdo ideológico, intelectual, político e programático dos dois ogros; esperei até ter uma ideia feita sobre as abordagens dominantes assumidas pela comunidade dos comentaristas, analistas, especialistas, politólogos e cartomantes que transformam os cérebros das populações submetidas ao “nosso modo de vida”, pelo menos dos cidadãos que ainda têm pachorra ou estômago para se deixarem de torturar por eles.

E se refere a outros, candidatos e analistas, domésticos ou da estância “civilizada”. A indigência pega-se, pelo menos foi o que demonstrou o efeito tenebroso em cadeia. Não apenas porque a corporação do “comentariado” – parece que é assim que se autodenominam – conseguiu encontrar matéria relevante no perdão das ideias expressas pelos contendores, espremeu-se até para encontrar um vencedor e um vencido, teorizou sobre as capacidades cognitivas de cada um , como se a demência política pudesse ser aferida por qualquer escala científica. O drama que se tornou assustadoramente exponencial as consequências da contenda entre dois indivíduos sem caráter, esclerosados, irresponsáveis, ignorantes, avatares de seres humanos degenerados, foi a maneira como este universo da opinião única ignorou ou omitiu deliberadamente o que esteve e está determinado e quase exclusivamente em causa nos períodos que envolvem os candidatos e as Auto eleições presidenciais nos Estados Unidos da América.

Eles são os nossos chefes

Aqui, o debate, era sem alguma dúvida o retrato do Inferno. O Inferno em que vivemos sem que muitos, talvez a maioria, se dêem em conta do risco de podermos transformá-los em poeiras radioativas de um momento para o outro; o Inferno da vida que os poderes representados por aquele dois psicopatas nos impõem e os nomes continuam se as relações de forças internacionais e, principalmente, a impaciência ativa dos povos do mundo não deixará o império desmoronar. Existem muitos indícios de que ele já mal se aguenta de pé, mas não tenta suicidar-se. Ainda possui muitos recursos, explora sem reservas o ódio pelos seres humanos, põe e distribui as nossas vidas através dos métodos mais violentos e também mais insidiosos, sem que se vislumbrem quaisquer limites para a sua saúde vir a sofrer o travar antes de chegar ao extremo de eliminar a vida no planeta.

Ainda há quem entenda estas considerações como coisa de lunáticos, mas não perdemos a noção de que o simples fato de observarmos a colocação de marionetes transtornadas à cabeça das coisas político-militares dominantes no mundo revela o grau supremo de liberdade usufruído pelos monstros que, deslocando-se -se dormindo em mundos subterrâneos, conduzem a economia e as finanças globais. Esse poder real, absoluto e incontestado serve-se da política e do militarismo como braços poderosos, como centros de imposição comportamental, de manipulação e engenharia social para transformar metodicamente os seres humanos em mais instrumentos ao serviço de interesses que não são os seus, tornando-se -se até inimigos involuntários de si mesmos.

Joseph Biden e Donald Trump são os nossos chefes conhecidos. Para todos os efeitos, pensando apenas em termos da ponta do iceberg dos poderes mundiais, são eles que mandam na OTAN, na ONU, na União Europeia, em cada um dos nossos países que em tempos foram soberanos; que mexem os cordelinhos do terrorismo transnacional “moderado”, como a al-Qaeda, o Isis e tantos outros heterônimos, que fazem a guerra e decidem sobre a paz, que definem o que é a democracia e como deve ser praticada, que funciona como o alfa e o ômega do grande aparelho transnacional de controlo mental, que impõem o mercado como a ditadura das nossas existências, que espiam e se apropriam da nossa privacidade com métodos e meios cada vez mais desumanos e sofisticados; que agem como árbitros “legisladores” e gestores da “ordem internacional baseada em regras”, sistema comportamental obrigatório que subverte e impede o regular funcionamento do direito internacional. São eles, em suma, o paradigma atual da nossa democracia liberal, o “farol” da liberdade, dos “valores ocidentais”, do respeito pelos “direitos humanos”, da “responsabilidade de proteger”, através da guerra, em cada recanto do mundo. A imagem que esses trastes alienados transmitem aos olhos da população mundial espelha fielmente o estado em que se encontram a política ocidental e a “nossa” democracia liberal – um retrato do Inferno.

Veja as diferenças

Há quem pretenda estabelecer distinções entre Joseph Biden e Donald Trump, como faríamos em relação a qualquer outra dupla em competição, suponhamos Hilary Clinton e a vice-presidente de turno Kamala Harris. É uma atitude que não passa de um esforço irresponsável para dar credibilidade a um sistema caducado, subvertido desde as proclamações iniciais, já lá vão quase 250 anos, malévolo, desumano em nome da humanidade, agressor em nome da paz e da democracia, expansionista e salteador dos bens e das riquezas alheias, cobrindo e fundindo agora, sob as suas asas, o velho e o novo colonialismo como práticas ancestrais ao sistema imperial.

Diferentes e iguais, Biden e Trump representam, apesar da pungente exibição de um grau irreversível de decadência humana, duas faces da mesma moeda, um autêntico partido imperial único gerindo simultaneamente os seus tentáculos que se movem através do Ocidente coletivo como instrumentos indispensáveis ​​da democracia liberal, a autêntica, exclusiva e à qual temos de obedecer em rebanho e sem balir.

Nos Estados Unidos os aparelhos encarregados de fazer política designam-se Partido Democrático e Partido Republicano; na Europa e no resto do Ocidente podem chamar-se, entre outras coisas, “centro político”, “bloco central”, “convergência” entre socialistas, conservadores e liberais, sistema que prevalece na composição e funcionamento do aparelho autoritário batizado como União Europeia.

Mecanismos de poder todos diferentes e todos iguais, a exemplo do que sucede na cúpula do poder imperial – quando é necessário que a política exerça o papel que lhe está reservado para fazer cumprir as ordens do neoliberalismo e do seu deus inquestionável, o mercado.

Analistas de “esquerda”, muito úteis para compor o ramalhete “pluralista” do comentador doméstico, chegam a qualificar Biden como um candidato “sério” perante um “mitómano e outras coisas do mesmo jaez que Donald Trump efetivamente é, além de mentiroso contumaz, corrupto, ladrão de petróleo e outras riquezas alheias. Atividades que, mantendo a memória em funcionamento, também não são estranhas ao presidente e titular democrata.

Pela “seriedade” de Joseph Biden fala sobre sua carreira política medíocre, mas, principalmente, corrupta, manipuladora, belicista, cleptômana e sangrenta ao longo de mais de 50 anos. E sempre afeta o poder, fosse democrata ou republicano, como no caso do apoio ativo às invasões do Iraque cometidas por Bush pai e filho. Biden foi fervoroso adepto dos golpes terroristas na América Latina, África e Oriente, distinguindo-se nas frentes de apoio ao desmantelamento sanguinário da Jugoslávia, à colonização neoliberal e saqueadora da Rússia, às invasões do Iraque, do Afeganistão e da Somália. Meteu e mete directamente as mãos nas permanentes carnificinas sionistas contra o povo palestino – dizendo-se “sionista cristão” – e nas invasões do Síria, através de “procuradores” terroristas, e da Líbia, patrocinando a destruição e matança gerais, a começar pelo bárbaro assassinato de Muammar Gaddafi. “Chegamos, vimos e ele morreu”, proclamou, num arco imperial, a então secretária de Estado Hilary Clinton, da administração Obama, na qual Biden foi vice-presidente. Cargo onde desempenhou funções primordiais no golpe nazista da praça Maidan, na capital da Ucrânia, exibindo as portas ao massacre de aproximadamente 14 mil pessoas no Donbass, entre 2014 e 2022, e à perda de pelo menos 500 mil vidas no confronto militar direto entre Ucrânia e a Rússia que se lhe seguiram. Um currículo investível para um político “sério”.

A elite de “referência” do exército garboso do comentado acha que no confronto entre os Partidos Democrático e Republicano tem o dever de assumir uma política e até snobstarterzinha pela ala democrata, de comportamento muito mais “europeu”, eivada de boas maneiras, capaz de fazer das guerras pensamentos humanitários e até ecológicos, – como se diz a propósito das manobras militares da NATO. Expresse até sonoras condescendências e bem calibradas manifestações de afeto pelas minorias LGBT, negras, de salvadores do planeta e tantas outras causas ditas “fraturantes” como as questões do aborto e dos direitos da mulher. Ao contrário do brutal Trump, que solta a boca fora ou lhe passa pela cabeça, carecendo da moderação, do cinismo e do oportunismo de discurso que Biden foi praticando ao longo do meio século movendo-se pelos corredores e gabinetes de Washington.

Não esqueçamos, além disso, que o Partido Democrático tutela até a Internacional Socialista, um ponto a seu favor para as instituições mais profundas da Europa, com o mérito acrescido de ter contribuído, como nenhuma instituição, para a evolução do anacrónico “socialismo democrático” – uma aberração em tempos de extinção das ideologias – em direção ao “socialismo” com as cores neoliberais, que devem ser obrigatoriamente ostentadas por todos os partidos “com vocação de poder”.

Joseph Biden, um demente político ao nível do seu rival Trump, mas com um patrimônio de poder que deixa o adversário nas divisões distritais, encaixa-se às mil maravilhas na encenação cultivada pelo Partido Democrático. Fala bem (às vezes titubeia um pouco, é certo, e quando a mente está em defesa da democracia e dos direitos humanos), veste melhor, exibe um sorriso bastante diplomático, caminha como se estivesse numa passerelle (os tropeções esporádicos devem-se a sujidade nos rayban de sol, imagem de marca dos expoentes securitários), cuida do corte de cabelo e mantém o branco natural; usa boné apenas quando ele é ligado ou oferecido por um craque da primeira liga do campeonato; até a sua evidente demência cognitiva não passa de um sintoma de jet leg e de cansaço genético à atividade complexa e turada no desempenho do cargo.

Donald Trump traduz melhor que ninguém na atualidade do Partido Republicano. Fala como um trauliteiro, mente por vício e não é para defender a democracia e os direitos humanos, veste como uma bimbo, levanta-se de maneira alarve e boçal, caminha como um arruaceiro e provavelmente até escarra no chão, tem o cabelo oxigenado e um penteado que não lembra a ninguém, engana a Melânia, usa óculos escuros comprados nos esconder à porta dos armazéns Valmart numa vila perdida do Kentucky, prefere bonés nacionalistas e bacocos copiados das gangues do Metro de Nova York; e a sua demência cognitiva é de nascença, nada tem a ver com a prognostica idade.

Biden e Trump são como a água e o azeite também quando chega o momento de produzir os cartazes e os videoclipes de campanha, quando são chamados à televisão para debater ideias que não têm, preocupações que não sentem, para usar e abusar dos truques ensinados pelos assessores de imagem – e para reduzir o confronto a ataques e insultos pessoais, ainda que com ademanes díspares e opostos de elegância.

Porém, são gêmeos na política, igualmente eficazes quando se trata de servir como agentes administrativos e “democráticos” do neoliberalismo; isto é, cumprem a tarefa para a qual são indigitados pelo omnipresente e submersos “Estado profundo” e posteriormente “escolhidos pelo povo” através de mecanismos eleitorais distorcidos, antecedidos de peditórios milionários junto da gente que conta, concebidos em delicadas degustações e capitães soirées dançantes ; e recorrendo também a feiras de comércio político montadas em cenários de Hollywood, seguindo guiões da série mais rasca onde se estipulam discursos ricos em piadas idiotas recebidas com coros de gargalhadas a pedido, abrilhantadas por claques de cheerladies equipadas com Barbie.

É assim a política que orienta a prática da democracia liberal, a “nossa democracia”, uma sucessão de rituais cumpridos enquanto os verdadeiros donos disto tudo, de nós todos, senhores dos impérios económicos e financeiros planetários decidem quanto há para decidir nos cenáculos do mercado , deus da modernidade política, militar, social e cultural. De vez em quando se juntam os conclaves conspirativos e decisórios do Bilderberg, da Trilateral, do Fórum Econômico Mundial e outros, para os quais arrolam alguns plebeus prometedores para fazer deles os magarefes que mantêm a política e os universos do comentado nos eixos.

E a guerra, as guerras que estamos vivendo e sofrendo, com as catástrofes humanitárias e as incertezas genéticas, mais não são do que os veículos a repassar o império em desespero, tentando evitar que a evidente e irreversível decadência se torne real mais dia menos dia, dando eventualmente lugar a uma ordem internacional assente no direito internacional existente e na cooperação entre países soberanos e iguais. Caso isto não aconteça, a loucura dos políticos “com vocação de poder” instalada no areópago dos areópagos ocidentais, mergulhados no seu autismo demente ao mesmo tempo que são manipulados pelos insaciáveis ​​senhores do dinheiro, deixar-nos-á sem apelo à mercê desses degenerados . Num cenário assim consumido os monstros insaciáveis ​​do mercado, que não admitem limites ao respeito pelas suas exigências e são imunes a qualquer vínculo emotivo com os seres humanos, usarão e abusarão do poder absoluto facultado pelo fascismo neoliberal e, se acharem necessário, não hesitarão em condenar-nos ao terror supremo capaz de limpar o planeta do excesso de gentalha que os incomoda.

O debate patético, incongruente, surreal na verdadeira acepção do conceito entre os dois homúnculos que lutam pela gestão formal e o rogo de um império agônico revelou que a “nossa civilização”, o orgulhoso e arrogante “mundo ocidental” atingiu o grau zero e mais rasteiro da política. Os políticos a quem o mercado entrega o poder por via “eleitoral” e “liberal” não passam hoje de burocratas serviçais que, a bem dizer, já quase nem tentam convencer-nos de que representam os nossos interesses e a nossa vontade manifestada em papéis inúteis depositados num caixotinho sem fundo. Eles são, afinal, juntamente com os acólitos da propaganda e os salteadores do jornalismo, da academia e da cultura, os autênticos idiotas úteis de um sistema infernal e incontrolável de poder do qual só nos apercebemos (e já não é pouco) pela via dos afloramentos que infernizam a vida de cada um.

Aquele debate entre a fina flor demente dos idiotas deste “Ocidente” – e que terá pelo menos uma sequela, segundo se diz – foi um retrato do inferno.

Desejamos, e para isso temos uma tarefa tão urgente como gigantesca nas nossas mãos, que tal retrato não se transforme num fato da vida – ou talvez aqui deva escrever-se morte – real.

strategic-culture.su

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