EUA fora do Oriente Médio!

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por Pål Steigan*

Atualmente os EUA têm grande dificuldade em manter a sua hegemonia no Oriente Médio. As suas tropas foram declaradas indesejáveis no Iraque. Na Síria, os EUA e sua legião estrangeira de terroristas perdem terreno e posições todos os meses. Os Estados Unidos responderam a isso com uma escalada significativa, enviando mais tropas e ameaças constantes contra o Irã. Ao mesmo tempo, viram-se fortes movimentos de protesto no Líbano, Iraque e Irã.

O projeto para o novo Oriente Médio

Quando milhões de iraquianos saíram às ruas recentemente, o seu principal slogan era “Os EUA fora do Oriente Médio!” Como devemos analisar este facto?

Obviamente, existem muitas tensões sociais no Médio Oriente baseadas nas classes sociais e de natureza étnica, religiosa e cultural. A região é uma manta de retalhos de conflitos e tensões que remonta não apenas a centenas de anos, mas até mesmo a milhares. Há sempre, em qualquer parte do mundo, muitas razões para o povo se rebelar contra a corrupção das classes exploradoras. Mas nenhuma rebelião pode ter êxito se não for baseada numa análise realista e exaustiva das condições específicas de cada país e região.

Tal como na África, as fronteiras do Oriente Médio foram arbitrariamente traçadas. São o produto das manipulações das potências imperialistas e em muito menor grau o que os próprios povos queriam.

Durante a era da descolonização, houve um movimento pan-árabe forte e secular que queria criar um mundo árabe unificado. Esse movimento foi influenciado pelas ideias nacionalistas e socialistas que tinham forte apoio popular na época. O rei Abdallah I da Jordânia imaginou um reino que incluísse a Jordânia, a Palestina e a Síria. O Egito e a Síria estabeleceram durante algum tempo uma união chamada República Árabe Unida. Kadafi queria unir a Líbia, Síria e Egito numa federação de repúblicas árabes. Em 1958, uma confederação rapidamente dissolvida foi estabelecida entre a Jordânia e o Iraque, chamada Federação Árabe Todos esses esforços foram transitórios. O que resta é a Liga Árabe, que afinal não é uma federação estatal nem sequer uma aliança. E, claro, temos a reivindicação de um Estado curdo, ou algo semelhante, consistindo num ou mais mini estados curdos. Ainda assim, após ter terminado a Primeira Guerra Mundial, a medida que mais divisões provocou foi o estabelecimento do Estado de Israel em solo palestino. Durante a Primeira Guerra Mundial, o ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, Arthur Balfour, emitiu o que ficou conhecido como a Declaração Balfour , que ” […] considera favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”.

Mas qual é a base de todas essas tentativas de criação de Estados? Quais são os pré-requisitos para o sucesso ou fracasso?

As potências imperialistas dividem o mundo de acordo com as relações de poder entre elas

Lenin deu a melhor e mais duradoura explicação para isso, no seu ensaio “O imperialismo, fase superior do capitalismo”. Aí, ele expôs cinco características básicas da era do imperialismo:

A concentração da produção e do capital evoluiu para um situação preponderante, criando monopólios que passaram a desempenhar um papel decisivo na vida econômica;

A fusão do capital bancário com o industrial e a criação, com base nesse “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira;

A exportação de capital, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância excecional;

A formação de associações capitalistas monopolistas internacionais que compartilham o mundo entre si;

A divisão territorial do mundo inteiro entre as maiores potências capitalistas está concluída.

Mas Lenin também apontou que os países capitalistas estavam se desenvolvendo de maneira desigual, principalmente devido ao desigual desenvolvimento das forças produtivas nos vários países capitalistas. Depois de algum tempo, surgem discrepâncias entre a forma como mundo está dividido e a força relativa das potências imperialistas. Essa disparidade acaba por forçar uma redistribuição de áreas de influência, uma nova divisão do mundo, baseada na nova relação de forças. Como afirmou Lenin:

“A questão é, então: que outros meios além da guerra podem existir no capitalismo para superar a disparidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e a divisão de colônias e esferas de influência do capital financeiro, por outro?”

As duas guerras mundiais foram guerras que surgiram devido à desigualdade nas relações de poder entre as potências imperialistas. O Império Britânico havia passado o auge e o capitalismo britânico ficou para trás na competição. Os Estados Unidos e a Alemanha foram as grandes potências com maior crescimento industrial e tecnológico e, consequentemente, esse desalinhamento explodiu. Não uma, mas duas vezes.

Versalhes e Yalta

Os vencedores da Primeira Guerra Mundial dividiram o mundo entre si às custas dos perdedores. Os principais perdedores foram a Alemanha, o Império Austro-húngaro, a Rússia (União Soviética) e o Império Otomano. Esta divisão foi estabelecida no Tratado de Versalhes e noutros tratados menores.

No final da Segunda Guerra Mundial, as superpotências vitoriosas reuniram-se em Yalta, na Crimeia, União Soviética. Roosevelt, Churchill e Stalin fizeram um acordo sobre como a Europa seria dividida após a iminente derrota da Alemanha. Os dois blocos que surgiram se tornaram a base da Guerra Fria. Note-se que a Iugoslávia, criada após Versalhes em 1919, foi mantida e consolidada como “um país entre os blocos”. Portanto, era um país que possuía em si a herança dos acordos de Versalhes e Yalta.

A fatídica mudança de época quando a União Soviética caiu

Com o imperialismo, sempre houve uma luta entre várias grandes potências. As guerras têm sido sobre mercados, acesso a mão de obra barata, matérias-primas, energia, rotas de transporte e controlo militar. Os países imperialistas dividem o mundo entre si de acordo com sua força. Mas as potências imperialistas desenvolvem-se desigualmente.

Se um poder entrar em colapso ou perder o controle sobre algumas áreas, os rivais competirão para preencher o vazio. O imperialismo segue o princípio que Aristóteles na sua física chamou de horror vacui – o horror da Natureza ao vazio.

E foi o que aconteceu quando a União Soviética perdeu a Guerra Fria. Em 1991, a URSS deixou de existir, e logo o bloco oriental também passou à história. Assim, o equilíbrio que mantinha a antiga ordem foi quebrado. Uma enorme área estava disponível para uma nova divisão. A Rússia enfraquecida mal conseguiu preservar o seu próprio território e de forma alguma a área antes controlada pela União Soviética.

“Nunca uma área tão grande foi aberta para tornar a ser dividida. O resultado de duas terríveis guerras mundiais estava novamente em disputa. Não poderia deixar de levar à guerra”. (Pål Steigan 1999)

Quando a União Soviética se desintegrou, os acordos de Yalta e Versalhes entraram em colapso e abriram o caminho a uma corrida feroz para controlar esse espaço geopolítico vazio.

Foi o que lançou as bases da Geostratégia Americana para a Eurásia, que se concentrou em garantir o controlo sobre o vasto continente da Eurásia. É esta luta pela redistribuição a favor dos EUA que tem sido a base da maioria das guerras desde 1990: Somália, Iraque, Balcãs, Líbia, Ucrânia, Síria.

Os Estados Unidos têm liderado agressivamente esta situação. O processo para expandir a OTAN para leste, criando mudanças de regime sob a forma das chamadas “revoluções coloridas”, fez parte dessa luta. O golpe em Kiev, a transformação da Ucrânia numa colônia americana com elementos nazis e a guerra no Donbass também fazem parte deste quadro. A guerra não vai parar até que a Rússia seja conquistada e desmembrada ou que ela ponha um fim à ofensiva dos EUA.

Recapitulando: o mundo já está dividido entre potências imperialistas, não há novas colônias a serem conquistadas, as grandes potências só podem lutar pela redistribuição. O que cria as bases e as possibilidades de uma nova divisão é o desenvolvimento desigual do capitalismo. As forças que estão a desenvolver-se mais rapidamente econômica e tecnologicamente exigirão mercados maiores, mais matérias-primas, mais controlo geoestratégico.

Os resultados das duas terríveis guerras mundiais estão novamente em disputa

A Primeira Guerra Mundial causou talvez 20 milhões de mortes e pelo menos o mesmo número de feridos. A Segunda Guerra Mundial causou cerca de 72 milhões de mortes. Estes são números aproximados e ainda há controvérsia em torno dos números exatos, mas falamos desta ordem de grandeza. As duas guerras mundiais, que tiveram como resultado os tratados de Versalhes e Yalta, causaram pouco menos de 100 milhões de mortos, além de um número incrível de outros sofrimentos e perdas.

Desde 1991, uma “guerra mundial” de baixa intensidade é travada, principalmente pelos EUA, para conquistar o “vazio”. Donald Trump afirmou recentemente que os Estados Unidos travaram guerras baseadas em mentiras, que custaram 8 milhões de milhões de dólares e milhões de vidas. Portanto, a redistribuição de espólios feita pelos EUA não aconteceu pacificamente.

“A rebelião contra Sykes-Picot”

No debate sobre a situação no Oriente Médio, certas pessoas que gostariam de parecer de esquerda, radicais e anti-imperialistas, dizem que é hora de se rebelar contra as fronteiras artificiais traçadas pelos tratados de Sykes-Picot e Versalhes. Certamente que essas fronteiras são artificiais e imperialistas. Mas quão de esquerda e anti-imperialista é lutar para que essas fronteiras sejam revistas agora?

Na realidade, são os EUA e Israel que lutam por uma redistribuição dos espaços de influência no Oriente Médio. Essa é a base subjacente ao “Acordo do Século” de Donald Trump, que tem o objetivo de enterrar a Palestina para sempre e estabelecer definitivamente o plano dos EUA de dividir o Iraque.

Esta é apenas uma versão atualizada do plano Sionista Yinon que visava dividir todo o Oriente Médio em cantões, com o objetivo de que Israel não tivesse oponentes reais e pudesse dominar toda a região, possivelmente criando um Grande Israel.

Não são os anti-imperialistas que lideram as vias para rever as fronteiras imperialistas de 1919. São os imperialistas. Para conseguir isso, eles costumam explorar movimentos inicialmente populares ou nacionais, mas que depois se tornam ferramentas e meros servidores de um jogo maior. Isto aconteceu tantas vezes na história que dificilmente pode ser contado.

A Alemanha de Hitler explorou o nacionalismo croata usando os bandos ustachis para os colocar ao seu serviço. De 1939 a 1945, eles mataram centenas de milhares de sérvios, judeus e ciganos. Os seus descendentes ideológicos e políticos realizaram uma limpeza étnica extremamente brutal na área da Krajina expulsando pela força mais de 200 mil sérvios na chamada Operação Tempestade em 1995. Hitler também usou o nacionalismo extremista da Ucrânia do OUN de Stepan Bandera e após a morte de Bandera, a CIA continuou a usá-los como uma quinta coluna contra a União Soviética.

A guerra de baixa intensidade dos EUA contra o Iraque, a Guerra do Golfo em 1991 a Guerra do Iraque em 2003, ajudaram a dividir o país em enclaves. O Curdistão iraquiano alcançou autonomia no norte, rico em petróleo com a ajuda de uma “zona de exclusão aérea” dos EUA. Os Estados Unidos criaram assim um quase-Estado que foi a sua ferramenta no Iraque. Sem dúvida, que os curdos no Iraque foram oprimidos sob Saddam Hussein. Mas também, sem dúvida, que o “Curdistão” iraquiano se tornou um Estado vassalo sob o controlo dos Estados Unidos. E também não há dúvida que as zonas de exclusão aérea eram ilegais, como admitiu numa conversa com John Pilger o secretário-geral da ONU, Boutros-Ghali.

Agora os EUA ainda estão usando os curdos no norte do Iraque no seu plano de dividir o Iraque em três partes. Para isso, estão construindo o maior consulado do mundo em Erbil. O que eles planejam fazer é simplesmente “criar um país”.

Como é sabido, os Estados Unidos também usam os curdos na Síria como pretexto para manter 27% do país ocupado. Não importa quanto as milícias curdas SDF e PYD invoquem democracia, feminismo e comunalismo; acabaram a pedir aos Estados Unidos para manterem a ocupação do nordeste da Síria.

Preparativos para uma nova guerra mundial

Israel e os EUA estão se preparando para a guerra contra o Irã. Nesta luta, eles desenvolverão uma retórica “progressista”, necessária para enganar as pessoas. A verdadeira insatisfação na área, que há todos os motivos para ter, será ampliada na proporção necessária. Os “movimentos sociais” serão equipados com as últimas “fake news” israelenses e norte-americanas, receberão treino e apoio logístico, além de muito dinheiro vivo.

Pode haver boas razões para rever as fronteiras de 1919, mas na situação de hoje, esse movimento desencadeará rapidamente uma grande guerra. Alguns dizem que os curdos têm direito ao seu próprio Estado, e talvez sim. A questão será finalmente decidida por todos, exceto pelos próprios curdos. O problema é que, na situação geopolítica de hoje, a criação de um Curdistão unificado exigirá que “alguém” derrote a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irã. É difícil ver como isso pode acontecer sem que os seus aliados, principalmente a Rússia e a China, sejam atraídos para o conflito. E então temos uma nova guerra mundial nas mãos. Nesse caso, não estamos a falar de 100 milhões de mortos, mas talvez de dez vezes mais, ou o colapso da civilização como a conhecemos. A questão curda não vale tanto.

Isso não significa que não se deva lutar contra a opressão e a injustiça, seja social e nacional. Qualquer um certamente que o deve fazer. Mas é preciso entender que rever o mapa do Oriente Médio é um plano muito perigoso correndo-se o risco de acabar em muito perigosa companhia. A alternativa é apoiar uma luta política que mine a hegemonia dos EUA e Israel e, assim, crie melhores condições para futuras lutas.

Não é novidade que as pequenas nações confiam em situações geopolíticas para alcançar alguma forma de independência nacional. Foi o caso, por exemplo, da Noruega, meu país de origem. Foi a derrota da França na Guerra Napoleônica que levou a Dinamarca a perder a província da Noruega para a Suécia, em 1814, mas, ao mesmo tempo, criou espaço para uma Constituição norueguesa separada e um governo com autonomia. Toda honra aos fundadores noruegueses de 1814, mas isso foi decidido nos campos de batalha na Europa.

Novamente, foi a derrota da Rússia na Guerra Russo-Japonesa que lançou as bases geopolíticas para a dissolução da união forçada com a Suécia quase cem anos depois, em 1905 (Isto está apresentado esquematicamente e há muitos mais detalhes, mas não há dúvida de que a perda de grande parte da frota russa no Extremo Oriente criou um vácuo de poder no ocidente, que foi explorado).

Portanto, a melhor coisa a fazer agora não é apoiar a fragmentação dos Estados, mas apoiar uma frente unida para expulsar os Estados Unidos do Oriente Médio. A marcha de milhões de pessoas em Bagdá fez a bola rolar. Há todas as razões para criar ainda mais força por trás disso. Somente quando os Estados Unidos estiverem fora, os povos e países da região poderão chegar a acordos pacíficos entre si, que permitirão o desenvolvimento de um futuro melhor. E, neste contexto, é uma vantagem que a China desenvolva a “Rota da Seda”, não porque a China seja mais nobre que outras grandes potências, mas porque esse projeto, pelo menos na situação atual, não é sectário, não é exclusivo e é genuinamente multilateral. A alternativa a uma liderança monopolista dos EUA, com uma polícia mundial controlada por Washington, é um mundo multipolar. Ela cresce enquanto falamos. Os dias do Império estão contados. Se isso será daqui a 20 ou 50 anos, ainda está para ser visto.

[*] Jornalista, norueguês, editor do site de notícias independente steigan.no/tag/english/ .

Fonte:  clearinghouse

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