Novos sinais recessivos: economia global em vias de uma “japanização”?

O receio de estarmos às vésperas de uma nova recessão mundial – sem ter resolvido as consequências da Grande Recessão de 2008 – impregna a atmosfera dos mercados financeiros e seus veículos de imprensa.

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Não escapou a esse sentimento nem mesmo a cúpula do G7 reunida em Biarritz, na França, que teve como tema transcendental as queimadas criminosas de Bolsonaro e do agronegócio na Amazônia, atravessada pelos interesses espoliadores do imperialismo na região. As tensões internacionais, que baixaram relativamente com o anúncio de Trump de que a China estaria pronta para negociar um acordo comercial com os Estados Unidos, aumentaram novamente à luz da ameaça de Boris Johnson, primeiro-ministro da Inglaterra, de fechar o Parlamento a fim de bloquear qualquer iniciativa da Câmara dos Deputados de Westminster de impedir o chamado no-deal Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia, sem qualquer acordo).

Essas tensões nublam ainda mais o panorama econômico internacional que, apresenta sinais recessivos nas três principais potências globais – Estados Unidos, China e Alemanha, todos os quais revelando retração em sua produção industrial, especialmente fruto da guerra comercial entre Washington e Pequim.

Entretanto, pode ser que haja mais coisas entre o céu e a terra que os efeitos do conflito comercial-tecnológico. Estaríamos às portas de um fenômeno de “japanização” da economia mundial?

“Japanização”

“Japanização” (“Japanisation”) é um termo utilizado pelos economistas para descrever o calvário de quase 30 anos do Japão na batalha contra a deflação e o crescimento anêmico do PIB, caracterizado por extraordinárias, porém ineficazes, medidas de estímulo econômico incapazes de impulsionar o crescimento econômico. Ou seja, o crédito barato, a taxas de juros historicamente baixas, não resultou numa alavancagem do investimento e da produção.

A analogia é útil desde que não se esqueça a diferença nos “princípios ativos” que deram origem àquele processo, e a este novo. O lento crescimento japonês foi arquitetado como uma política agressiva dos Estados Unidos através do Acordo de Plaza de 1985, segundo o qual Washington impunha a depreciação do dólar diante das moedas do Japão e da Alemanha, em meio ao início da etapa neoliberal. Agora, o lento crescimento de distintas economias é fruto da crise econômica mundial do capitalismo, iniciada em 2008, e agravada pela guerra comercial entre EUA e China que disputam a preeminência tecnológica no mundo. Não se trata de um processo similar, e indica outra seta na dinâmica capitalista.

Feita essa diferenciação, distintos think tanks já argumentam há muito o processo de japanização da Europa, esperando ao menos que os Estados Unidos escapassem da moléstia econômica. Mas com o final das políticas de estímulo monetário de Trump (o corte de impostos às grandes empresas), a baixa inflação e o corte na taxa de juros do Banco Central (Federal Reserve) norte-americano, mesmo os EUA parecem se aproximar do cenário japonês. Acrescente-se a isso o registro de retração na produção industrial norte-americana pelos últimos dois trimestres (1.9% e 1.2%, respectivamente) – e a tormenta está armada.

Segundo Robin Wigglesworth, do Financial Times, o principal sinal de um processo de “japanização” mais generalizado seria o crescimento das dívidas com rendimento negativo (“negative-yielding debt”) ao longo dos últimos meses. Há mais de 16 trilhões de dólares em títulos de dívida pública sendo comercializados com rendimento abaixo de zero (mais de 30% do total global). Isso significa que a compra desses títulos da dívida, emitidos pelos governos (uma das formas mais seguras de rentabilidade de investimento até então) não gera rendimento, pois tem taxas de juros iguais a zero, ou abaixo de zero. Governos como o da Alemanha e da Holanda operam a totalidade de seus mercados de títulos com rendimento abaixo de zero; mesmo países como Portugal, Espanha e Irlanda passam por fenômenos parecidos.

O fato de que os grandes especuladores financeiros e demais espoliadores capitalistas se vejam na circunstância de perder dinheiro (comprando títulos de dívida com taxas de rendimento negativas) em troca de um lugar seguro para armazená-lo, é revelador do panorama sombrio da economia mundial.

Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, sumariza assim a questão, “A economia monetária estilo ’buraco negro’ – taxas de juros estagnadas a zero, sem perspectiva de saída – representa agora a ’expectativa confiante’ dos mercados na Europa e no Japão, com rendimento igual a zero, ou abaixo de zero, pela próxima geração […] Chame-se isso de problema do buraco negro, estancamento secular ou japanização, essa é hoje a principal preocupação dos bancos”.

Agora, o mercado da dívida governamental dos Estados Unidos representa 95% dos títulos com grau de investimento, ou seja, com taxas de juros acima de zero, segundo o Bank of America. Esse trunfo, entretanto, pode não durar por muito tempo.

Novamente, o problema da inversão da curva de rendimento

Isso porque os Estados Unidos acaba de ver, pela segunda vez em duas semanas, o rendimento da dívida de longo prazo cair. A rentabilidade dos títulos de 30 anos caíram 6 pontos básicos, a um piso histórico de 1.9%, nesta quarta-feira (28). A rentabilidade dos títulos de 10 anos caíram 3.2 pontos básicos, para 1.4%. Essa queda do rendimento indica que os especuladores estão prevendo baixo crescimento para os próximos anos.

A meados de agosto, os títulos de longo prazo dos Estados Unidos registraram queda de rendimento abrupta, com a taxa de rendimento dos títulos de 10 anos caindo para 1.58%, e os de 30 anos caindo para um pouco mais de 2%, os mais baixos desde a década de 1970. Os títulos de longo prazo do Tesouro normalmente conferem taxas de rendimento maiores, justamente pelo risco maior que há em reter dívidas estatais por tão longo tempo. Mas dessa vez, a queda no rendimento dos títulos de 10 anos o colocou abaixo do rendimento dos títulos de 2 anos, tornando mais rentáveis os de curto prazo que os de longo prazo. Este fenômeno, que ocorreu pela última vez em 2007, é chamado pelos economistas de “inversão na curva de rendimento”, e no caso dos Estados Unidos é o indicador mais fiel desde a década de 1960 de que uma recessão no país está próxima.

Esse cenário explica o conceito de “estancamento secular” utilizado por Summers para explicar o contexto de baixas taxas de empréstimo para investimento na produção mesmo com baixíssimas taxas de juros disponíveis.

Um novo capítulo da crise?

Em base a essas nuvens de mau agouro que se acumulam nas Bolsas e mercados de dívida, economistas como Nouriel Roubini apontam uma diferença entre as causas que desencadearam a Grande Recessão de 2008, e as possíveis causas de uma nova recessão mundial que se desenham no horizonte.

Segundo Roubini, diferentemente de 2008, que foi em grande medida um choque de “demanda negativa agregada” – altos índices de endividamento das empresas e monopólios bancários, que receberam trilhões de dólares dos governos europeus e dos EUA em base a brutais ajustes contra as massas trabalhadoras – um eventual novo episódio recessivo global seria disparado por um “choque de oferta permanente”, promovido pela acentuação da guerra comercial-tecnológica entre Estados Unidos e China. Medidas contra-cíclicas de estímulo monetário – os programas de “relaxamento quantitativo”, que injetaram crédito barato na economia – puderam absorver o choque de 2008, não sem a destruição da infraestrutura e das condições de vida dos trabalhadores de distintos países. Agora, políticas de estímulo fiscal e monetário seriam inúteis.

É preciso frisar que, da forma colocada pelo economista keynesiano, pode-se cometer o equívoco de considerar que estão “eliminadas” as possibilidades de novas políticas monetárias e fiscais. Talvez esse seja o momento, em um período de décadas, em que as condições de vida da classe trabalhadora dos países avançados tenham maiores pontos de contato com as mesmas condições de países atrasados. E sem dúvida a burguesia lançará mão de novos ajustes fiscais para extrair o possível dos setores explorados e oprimidos.

Por outro lado, são medidas que se apresentam menos eficazes do que foram em 2008. O consumo segue forte apenas em um punhado de países, tendo sido deprimido em diversas regiões do globo. Ademais, ao problema do alto endividamento que obstaculiza o consumo, se acresce o problema da queda dramática da própria produção global. A contração do setor industrial dos Estados Unidos, ligado à retração da produção industrial na Alemanha e na China, retrata a queda da dinâmica do comércio internacional. Sem perspectiva de altas margens de lucro, pelas incertezas geradas em meio aos atritos comerciais, os capitalistas retém seus investimentos e diminuem a produção. Essa retração na oferta não pode ser remediada através de estímulos monetários, justamente porque ainda com dinheiro disponível não seria prudente, para os grandes monopólios capitalistas que controlam a produção, investir num horizonte que apresenta perspectivas de perda.

Quando Marx parodia em O Capital o processo anárquico da produção capitalista, que só visa sua taxa de lucro como resultado máximo da produção, desvela com exatidão o espírito que anima os capitalistas (inclusive aqueles que se consideram os mais “progressistas”) na atual fase da crise. “Apesar de as botas constituírem, de certo modo, a base do progresso social e nosso capitalista ser um ’progressista’ convicto, ele não as fabrica por elas mesmas. Na produção de mercadorias, o valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-même [ que se ama por ela mesma]. Aqui, os valores de uso são produzidos apenas porque, e na medida em que, são o substrato material, os suportes do valor de troca”. E para os capitalistas do que se trata é da capacidade de vender suas mercadorias, de um lado, e realizar nesse comércio o mais valor extraída da exploração da força de trabalho da classe trabalhadora.

Sem esse belo horizonte adiante, pelas estripulias oriundas da disputa Trump-Xi Jinping, os capitalistas administram a própria ausência de oferta, podendo levar a economia mundial a uma nova recessão.

Dito de maneira sintética, para Roubini os três eixos que poderiam disparar uma eventual nova recessão mundial em 2020 adviriam de: 1) a guerra comercial Estados Unidos e China; 2) a disputa tecnológica entre essas mesmas potências; 3) uma crise do petróleo, derivada de um possível conflito maior com o Irã. Todos estes três fatores estão em pleno movimento. Roubini faz notar que o conflito entre EUA e China já está alimentando um amplo processo de “desglobalização” (ou “desacoplamento”) porque os países e as empresas já não podem dar por descontado a estabilidade a longo prazo de suas cadeias de valor. À medida em que o comércio de bens, serviços, capital, trabalho, informação e tecnologia se torne mais balcanizado, os custos globais de produção aumentarão para todas as indústrias. Por fim, a competição tecnológica amplifica a disputa comercial, já que a tecnologia 5G – disponibilizada hoje apenas pela gigante chinesa Huawei – será a forma padrão de conectividade desde os bens básicos de consumo até a complexa infraestrutura militar.

Sem dúvida, podemos encontrar um laço orgânico entre a guerra comercial-tecnológica entre Estados Unidos e China, de um lado, e uma nova recessão sincronizada nas principais economias do globo, de outro. Mas Roubini erra no pano de fundo de sua reflexão: é parte da corrente de pensamento que considera que o conflito movido por Trump “poderia ser evitado”, caso o presidente estadunidense fosse mais prudente com a economia mundial, ou outra figura ocupasse a Casa Branca.

Nada mais longe da verdade. Ainda que uma outra personalidade política ocupasse o assento de Trump em 2020, há certos processos estruturais que solavancam a economia e a geopolítica mundiais; modificações históricas no capitalismo e o surgimento de novos fenômenos são as principais alavancas que impulsionam personalidades como Trump nos EUA e Xi Jinping na China.

Cada uma dessas figuras atende a poderosas necessidades objetivas, e seus traços pessoais particulares, embora notáveis, são secundários diante desses movimentos de fundo. Engels estava correto ao dizer, em 1886, que os motivos e paixões ostensivos dos homens que agem historicamente de modo nenhum são as causas últimas dos acontecimentos históricos: por trás dessas vontades individuais, atuam poderosas forças históricas que tomam na cabeça dos homens tais e tais formas pessoais. Trump precisa impedir que a China cresça aceleradamente e ameace a posição do imperialismo norte-americano como principal potência; e Xi precisa acelerar a alteração no padrão de crescimento chinês para ameaçar a posição preeminente dos EUA.

O que não aparece no cálculo de ambos, das classes que representam e suas forças motrizes, é o impacto de eventuais novos capítulos da crise sobre a luta de classes internacional. A luta dos Coletes Amarelos na França indica que o que vimos no início da década com a Primavera Árabe não está descartado como hipótese, inclusive nos países centrais.

Com os processos de crise orgânica que abalam os principais países do mundo, de um lado, e processos de luta sem horizonte certo como o que ocorre em Hong Kong, os efeitos da guerra comercial se agravam; essas múltiplas determinações se retroalimentam e vão costurando saídas mais complexas para a crise. Se, conseguir demonstrar capacidade para renovar ciclos de crescimento econômico, até mesmo a direita dura neoliberal e a extrema direita começam a mostrar rachaduras e fragilidades políticas, num cenário em que se tornam extremamente difíceis as hegemonias estáveis em qualquer país do mundo – mesmo com Trump nos EUA. Ainda que novos processos da luta de classes a nível mundial não sejam automaticamente ligados a uma piora da crise, uma eventual nova recessão global traria à tona possibilidades de novos abalos internacionais.

Da Esquerda Diário

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