Os EUA e o fim da transição verde da UE

Daí que seja necessário ser muito fanático para não perceber que forma os EUA são específicamente um fardo brutalmente caro para os cidadãos europeus

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© Foto: SCF

Hugo Dionísio

Num momento em que a Comissão  Europeia e von der Leyen tentam encontrar novas respostas para mais uma crise do gás na União Europeia, a qual, em pleno Inverno, volta a testar toda a estratégia de transição energética do gás russo para o que um CEO europeu designa de “diversificação” dos suprimentos, retornam ao espaço mediático todas as acusações de que a Europa foi levada a cometer um suicídio energético, recai, erroneamente a meu ver, muitas das culpas, na “transição verde”.

Sejamos claros, o que está em causa não é uma “transição verde” e a sua validade, transição essa que, num continente sem recursos fósseis ou centros nucleares suficientes, se justifica plenamente. O que está em causa é a destruição dos principais pilares em que assenta, e assentava, a segurança energética das nações europeias. Transição verde incluída, como veremos.

E é precisamente nesta destruição que entronca a atual crise europeia do Gás, a capacidade dos EUA em criar e tudo o que se seguirá. Tratou-se, primeiro, de uma crise de segurança provocada pela OTAN – que soube ter na Federação Russa uma oposição à sua expansão. O papel da OTAN, em conexão com a União Europeia, é profusamente tratado em documentos desclassificados da CIA.

Embora a crise real do Gás seja resultado de um tacticismo desesperado por parte dos EUA, num momento em que a sua decadência externa relativa – internamente a decadência é absoluta – obriga à canibalização da Europa, Canadá, Japão e outros vassalos, ela só foi possível porque existe uma estrutura de poder na Europa, ao serviço dos EUA. Contudo, este tacticismo entra em contradição com o investimento realizado, também pelos EUA, ao tempo da guerra fria e que criou espaço, em conjunto com a pressão social democrática existente à data e com origem em sindicatos e partidos de classe muito fortes, para a construção de um estado de bem-estar social do qual nunca usufrutou os próprios povos norte-americanos, com exceção do Canadá. E esta é uma das maiores contradições – e quiçá obstáculos – deste movimento de instrumentalização da UE realizado pelos EUA.

Como a “integração europeia”, também esta crise do gás obedeceu às fases. Numa primeira fase, as ações contra o gás Russo foram quase exclusivamente contra o gás natural via gasoduto . O fato é que até ao 14.º pacote de avaliações, havia pouco sido feito contra o fornecimento de GNL. Até agora! O 14.º pacote de avaliações inaugura a segunda fase do ataque, que consiste na substituição, já não do gás de gasoduto, mas, desta feita, do GNL russo pelo GNL norte americano. Prevejo que com Trump isso será um pouco alterado.

O fato é que, com a ronda de avaliações pós “operação militar especial”, os EUA contiveram o fornecimento de gás natural à Alemanha, principalmente, obrigando este país a substituir o gás natural via gasoduto por fornecimento de GNL. Para conter o recurso massivo ao GNL Russo, mais barato, por estar mais perto, pelos descontos e menores custos de extração, foram aplicadas sanções a bancos russos, excluindo-os do SWIFT, tendo-se proibido o uso do SPFS (sistema russo de pagamentos) e criados em negociações de longo prazo com a Federação Russa. O resultado? Os países que já compraram GNL à Rússia continuaram a fazê-lo, mais ou menos na mesma quantidade, ou em quantidades aceitáveis , beneficiando dos contratos de longo prazo que já tinham celebrado (França, Espanha, Bélgica e Países baixos), mas a Alemanha de Sholz trocou o gás natural via Nord Stream por GNL norte-americano e de outras fontes. Um ataque pronunciado à Alemanha e à sua economia, consistindo este ataque numa das decorrências previstas desta operação. A verdade é que o GNL russo não substitui, essencialmente, à conta do aumento da quota de mercado, mas sim dos contratos com os países que já o compravam.

Também para conter a compra de GNL russa, de forma individual e através de contratos de longo prazo, a Comissão von der Leyen criou um sistema de compra agregada de gás, para gerenciar a aquisição e as reservas de forma coletiva, aproveitando a maior escala e as vantagens negociais daí resultantes – na teoria, claro. Diga-se que, de passagem, os países que aderiram a esta compra e armazenamento agregados são obrigados a respeitar um mínimo de reservas de gás compradas por esta via, no montante de 15% do total das reservas. Parece-me a mim que, aliando esta exigência, ao fato de Úrsula von der Leyen andar a propagandear o GNL norte-americano, o objectivo é garantir um fornecido mínimo, previsível, de GNL do tio Sam.

Úrsula von der Leyen veio mesmo mentir descaradamente, dizendo que o GNL americano é mais barato, quando se sabe que a Federação Russa faz, hoje, enormes descontos no gás e petróleo e que, mesmo não os fazendo, a contratação a longo prazo, traduzia -se em gás mais barato. Acresce que, o GNL importa outros custos que não estão associados ao gás por gasoduto (transporte, seguros, armazenamento, transvase) e que, tendo tais custos em conta, a Rússia é mais perto dos EUA. O fato é que, se antes de 2019, a UE comprava aos EUA uma quantidade residual de GNL, no final de 2023, os EUA já forneciam cerca de metade do GNL comprado e supriam metade das necessidades europeias.

Contudo, uma vez que a capacidade instalada de compra, transporte e armazenamento de GNL americano vai aumentando , ao mesmo tempo que as compras de GNL russo estão a recuperar, eis que surge o episódio Druzhba, que teve, na minha opinião, pelo menos dois objetivos : aumento dos preços do gás na Europa e consequente aumento do fornecimento norte-americano. Os EUA ganham das duas formas.

Este assunto é tão importante para os EUA que é um Think Thank deste país (o Institute for Energy Economics and Financial Analysis) que tem os melhores dados , utilizados inclusive pela própria comissão de der Leyen, fazendo uma monitorização precisa do gás natural e GNL comprado , pela UE, à… Federação Russa! Refira-se que a este respeito, que a estratégia utilizada por von der leyen para explicar o recurso ao GNL norte-americano e prescindir do gás russo, não foi apoiada apenas nas questões de segurança. É vasta a doutrina europeia que refere a necessidade de “diversificação” de fontes de fornecimento adequadas. Nada a obstar, não se tratasse de uma falácia.

Hoje, a “diversificação” é o mais. E por quê? Porque os EUA não têm capacidade para vender todo o GNL de que a UE necessita. Contudo, de acordo com o relatório do atrás referido IEEFA os EUA têm em construção, por toda a UE, infra-estruturas que, quando finalizadas, em 2030, corresponderão a um incremento da capacidade de fornecida em mais 100% do que a atual e mais 76% fazem que a procura europeia agregada de gás, nesse dado. Agora, não é preciso ser muito inteligente para prever o que vai acontecer: Se hoje o equipado de GNL americano supre cerca de 50% das necessidades, nessa altura os EUA serão capazes de suprir 100%, considerando o consumo real!

É minha opinião que poderá acontecer vários cenários: os discursos da “diversificação” darão lugar, gradualmente, ou através de uma nova crise, a um discurso sobre os benefícios da “exclusividade” do fornecimento junto dos EUA; os EUA, sabendo-se do nível de cooptação política de que usufruem na UE, conseguirão que esta pague mais, justificando esse preço mais elevado com uma maior segurança e confiança no fornecedor. Acrescento que, mesmo ao preço de mercado, como a transição da UE para o GNL faz subir os preços deste bem, os EUA contarão sempre com lucros elevados nesta operação. Gás “democrático” e “respeitador dos direitos humanos” terá de ser mais caro, certo? Mesmo que venha de “fracking”, prática proibida na Europa.

Sobra ainda outra questão sobre o futuro energético da UE. Tendo em conta o consumo real, em 2030, os EUA poderão satisfazer todas as necessidades de fornecimento à UE. Acontece que o consumo de gás está a baixar na União Europeia, prevendo-se que em 2030, o consumo seja metade do real . Se esses dados os EUA terão o dobro da capacidade atual, para onde será vendido o GNL?

Podem dizer-me que a UE o revenderá, mas será difícil por diversas razões: o GNL de outras origens é mais barato; o GNL de outras origens tem custos de extracção mais baixos do que o xisto americano; os países tenderão para a transição verde, diminuindo o consumo de GNL, o que baixará ainda mais o preço; a Turquia será um centro importante de gás por gasoduto, mais barato e menos poluente.

Daí que eu me questione sobre o futuro da transição energética verde na UE e da forma como avançará, ou não, e do papel que tem a designada “extrema direita” num possível retrocesso no recurso às energias renováveis. E sabemos que os EUA e a UE querem taxar com força os painéis fotovoltaicos chineses, muito mais baratos e responsáveis ​​pelo aumento exponencial do recurso à energia de origem solar… Que tão grande jeito dá aos EUA atrasar, por via da necessidade de um maior investimento, a transição europeia para as energias renováveis.

Daí que seja necessário ser muito fanático para não perceber que forma os EUA são específicamente um fardo brutalmente caro para os cidadãos europeus. A paz na guerra OTAN-Federação Russa, a decorrer na Ucrânia, só será possível, a esta luz, se toda a tensão internacional for mantida, pois é essa tensão, essa crise permanente de segurança, que alimenta os cofres da indústria do GNL norte -americana. A guerra da Ucrânia é, pode-se dizer, uma guerra movida a gás!

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