Um mundo que não é mais moldado pelas potências atlânticas

A desunião entre os EUA e seus aliados na Europa sugere que uma nova ordem mundial está surgindo

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US Defense Secretary Mark Esper fired accusations at China in Munich, but countries in Europe are reluctant to take a strong stand against Beijing. Photo: AFP

Por MK Bhadrakumar

A Conferência Anual de Segurança de Munique, realizada de 14 a 16 de fevereiro, acabou sendo um evento icônico, comparando com a realizada na mesma cidade da Baviera em 10 de fevereiro de 2007, onde, em  discurso profético,  o presidente russo Vladimir Putin havia criticado a ordem mundial, caracterizada pela hegemonia global dos Estados Unidos e seu “quase uso quase ilimitado da força – força militar – nas relações internacionais”.

Se o discurso de Putin em Munique em 2007 era presciente sobre o surgimento de uma nova Guerra Fria e o surgimento de tensões nas relações da Rússia com o Ocidente, 13 anos depois, na conferência de Munique deste ano, vimos que os laços transatlânticos que evoluíram nas duas grandes guerras no século passado e floresceram em uma aliança completa podem ter chegado a uma encruzilhada.

Rachaduras profundas apareceram na relação transatlântica. Em um discurso de abertura extraordinário  na cúpula de segurança deste mês, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, um eminência na diplomacia européia, acusou Washington de rejeitar “o próprio conceito de comunidade internacional”.

Steinmeier reconheceu que não há retorno aos dias felizes da estreita parceria transatlântica, à medida que a Europa e os EUA estão se afastando. Ele alertou: “Se o projeto europeu falhar, as lições da história alemã, mas talvez também da história européia, serão questionadas”.

Dito isto, Steinmeier também não defendia que a Europa pudesse fazer tudo sozinha. Em vez disso, “apenas uma Europa que pode e deseja se proteger com credibilidade poderá manter os EUA na aliança”.

Mas ele lamentou que “a Europa não seja mais tão vital para os EUA como costumava ser. Devemos nos proteger contra a ilusão de que o interesse cada vez menor dos Estados Unidos na Europa se resume apenas ao atual governo … Pois sabemos que essa mudança começou há um tempo atrás e continuará mesmo depois desse governo. ”

O tema da independência européia – a Europa se tornando um poder soberano, estratégico e político – também foi o tema  de um discurso  do presidente francês Emmanuel Macron, que trouxe um raro dinamismo ao debate europeu, lutando animadamente por uma política externa e de segurança européia comum. Os formuladores de políticas alemãs sinalizaram amplo acordo com a ideia de Macron de que a Europa deve assumir o controle de seu próprio destino.

Em contrapartida, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, insistiu  anteriormente que os comentários sobre a erosão da Aliança Transatlântica foi “grosseiramente exagerada” e, de fato, ” o Ocidente está ganhando . Estamos ganhando coletivamente. Estamos fazendo isso juntos. ”

Desunião do Ocidente

Enquanto isso, duas pautas que continuavam aparecendo nas discussões foram: Primeira, a contínua relevância do multilateralismo no sistema internacional e, segunda, a profunda ansiedade sobre o atual ambiente de segurança global.

Steinmeier estruturou as preocupações de maneira acentuada, dizendo que “a ideia de comunidade internacional não está fora de moda” e acrescentou que “a retirada de nossas conchas nacionais nos leva a um beco sem saída, a uma idade verdadeiramente sombria”.

Em suma, essas  trocas de acentuadas críticas  entre os europeus e parte da delegação americana confirmaram, mais do que nunca, a fraqueza e desunião do Ocidente. Um relatório do Politico na Conferência de Segurança de Munique observou: “Os dois lados não estão muito distantes das grandes questões enfrentadas pelo Ocidente (ameaças da Rússia, Irã, China), estão em universos paralelos”.

Uma questão importante que dividiu Munique foi a China. Nem Pompeo, nem o secretário de Defesa dos EUA, Mark Esper,  deixaram dúvidas de  que Washington considera a China uma força nefasta no mundo, representando uma ameaça significativa a longo prazo. Mas essa visão não é compartilhada por muitos países da União Europeia.

A questão subjacente é qual a postura que a aliança ocidental deve adotar em relação à China, que é fundamental, com consequências de longo alcance. A Europa está profundamente preocupada com as consequências que rejeitar Pequim teria no comércio e no investimento.

Ficou aparente na conferência que não havia aceitação do apelo de Pompeo de que a China é o novo inimigo. Sua advertência contra o envolvimento da empresa chinesa de tecnologia Huawei na implantação do próximo 5G – tecnologia de telecomunicações de quinta geração – foi recebida com um silêncio de pedra por aliados europeus. A política em relação à China poderia emergir como a maior divisão transatlântica.

O Ocidente pode recuperar sua influência?

O cerne da questão é que, com o declínio da riqueza material e a deterioração dos valores morais, a capacidade de influenciar diminuiu. E a forma de organização econômica do Ocidente não é mais tão atraente quanto era antes. Além disso, com a ascensão da China, o rápido desenvolvimento da Índia e o ressurgimento da Rússia, uma nova dinâmica de poder global está tomando forma.

À medida que essas e outras potências emergentes crescem em força, é provável que uma dispersão de poder e influência acelere, e é improvável que o Ocidente recupere a influência preponderante que exercia na era pós-Segunda Guerra Mundial.

Desdém dos EUA pelo multilateralismo

Essa perda de influência pode desacelerar se apenas um “novo Ocidente” liderado pela Europa, que combina poder e valores, chegar a unir-se com potências como Índia ou Japão para construir alianças globais. Mas uma grande lacuna reside no desprezo dos Estados Unidos pelo multilateralismo e uma ordem baseada em regras.

Da mesma forma, a pressão de Washington por sanções comerciais para avançar em seus confrontos unilaterais – seja com a Rússia, China, Irã ou Venezuela – falha em acalmar seus principais parceiros ocidentais, a maioria dos quais são avessos a qualquer forma de confronto, menos do que isso tudo com Pequim.

“Não podemos ser o parceiro júnior dos Estados Unidos”,  disse  Macron, citando falhas recentes na política de desafio do Ocidente. Claramente, as divisões internas afetam o Ocidente, e é difícil ver como elas podem ser superadas.

Na melhor das hipóteses, as coalizões podem aparecer dentro e entre os estados ocidentais em questões específicas. Mas, mesmo assim, o Ocidente pode, na melhor das hipóteses, desacelerar seu declínio relativo, mas nem de longe revertê-lo.

O cerne da questão é que o centro de gravidade econômico na ordem mundial e a subsequente equação de poder global estão se afastando inexoravelmente do Ocidente, enquanto, por outro lado, não existe mais um “Ocidente” unido por trás de princípios, valores e políticas.

MK Bhadrakumar é um ex-diplomata indiano.

Fonte:  Asia Times.

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