Acreditar em coisas impossíveis

O interminável e amargo antagonismo em relação a Putin e à Rússia permitiu que aflorasse uma realidade auto imaginada, que acabou por se tornar um delírio.

g7

A recente cúpula do G7 deve ser entendida, em primeiro lugar, como a configuração de um espaço de batalha na “Guerra das Narrativas”, cuja principal “frente” é hoje a insistência da Equipe Biden em que apenas uma “realidade” – a ideologia das “Regras” liderada pelos EUA (e só por ele) – pode predominar. E, em segundo lugar, para sublinhar explicitamente que o Ocidente “não está a perder” nesta guerra contra a outra “realidade”. Esta outra realidade é a “alteridade” multivalente que, como é evidente, está a atrair cada vez mais apoiadores em todo o mundo.

Muitos no Ocidente simplesmente não têm consciência da rapidez com que as placas tectonicas geopolíticas se estão a deslocar: A bifurcação original da placa (a fracassada guerra financeira declarada contra a Rússia) já deu origem a uma onda crescente. A raiva está a crescer. Os povos já não se sentem sozinhos na rejeição da hegemonia ocidental – “já pouco se importam”.

Só na semana que antecedeu a cúpula do G7, a Liga Árabe tornou-se literalmente “multipolar”; abandonou o seu antigo automatismo pró-EUA. O abraço ao Presidente Assad e ao governo sírio foi a consequência lógica da mudança secundária da placa tectónica posta em marcha pela China com a sua diplomacia saudita-iraniana – uma revolução que Mohammad bin Salman (MbS) estendeu logicamente a toda a esfera árabe.

MbS selou esta “libertação” do controle dos EUA ao convidar o Presidente al-Assad para a cúpula a fim de simbolizar o ato de iconoclastia generalizada da Liga.

Para o Ocidente, é ontologicamente impossível tolerar que a sua realidade seja desmontada: ver a sua sociedade e o mundo divididos em dois. No entanto, a narrativa da realidade está tão enraizada, através da eficácia bem treinada das mensagens dos meios de comunicação social, que os políticos se tornaram preguiçosos. Não têm de defender os seus argumentos e tão pouco têm qualquer incentivo para se conterem nas inverdades.

As dinâmicas não são inexoráveis: uma “realidade monolítica” super publicizada evolui para uma luta maniqueísta até à morte. Qualquer deslize dos “mandantes” poderia resultar no colapso do “castelo de cartas” da narrativa da midia. (Esta noção de uma realidade monolítica não é partilhada pela maioria das outras sociedades que encaram a realidade como multifacetada).

A negação torna-se endemica. Assim, assistimos a um G7 drástico, a desviar-se do revés narrativo (da queda de Bakhmut) através da adoção displicente de um estratagema para fornecer F-16s à Ucrânia; do castigo à China por não ter feito o Presidente Putin “recuar” na Ucrânia; e pela utilização da reunião destinada a estabelecer uma estrutura narrativa para o confronto que se avizinha com a China sobre questões comerciais e Taiwan.

Uma comentadora (na cúpula) perguntava-se “Ainda estou na Europa ou no Japão?”, quando ouvia uma retórica que parecia ter sido retirada do anterior discurso de Von Der Leyen à UE. Von de Leyen havia elaborado a formulação de “não arriscar” com a China para disfarçar a crescente bifurcação rastejante entre a UE e a China. Esta observação serve, no entanto, para sublinhar como Von der Leyen se tornou um membro de fato da equipe Biden.

A China respondeu com ira à alegação da cúpula do G7 [dizendo] que esta se tornara uma oficina para “difamar” e caluniar a China.

O G7 considera necessária esta extensa modelação da narrativa para o confronto com a China, uma vez que o resto do mundo não a vê como uma verdadeira “ameaça” para os EUA: Ao contrário, entende ele que as verdadeiras “ameaças” aos EUA derivam das suas divisões internas e não de fontes externas.

A importância do G7 não reside tanto nas narrativas anti-China lançadas, mas, dito de forma simples, uma vez que todo o episódio exprime uma arrogante negação ocidental, ele anuncia um perigo extremo em relação à Ucrânia. O episódio revela a realidade de que o Ocidente – no seu atual estado de espírito – será incapaz de apresentar qualquer iniciativa política crível para pôr fim ao conflito na Ucrânia (recorde-se que Moscou foi gravemente prejudicado pelo anterior episódio de Minsk).

A linguagem do G7 recusa qualquer diplomacia séria e indica que o imperativo continua a ser manter o mantra de “não perder”: A queda de Bakhmut não é uma derrota para Kiev, mas uma perda de Pirro para Putin; a Ucrânia está a vencer, Putin está a perder, foi a mensagem do G7.

A arrogância reside na perene condescendência ocidental para com o Presidente Putin e a Rússia. Washington (e Londres) não conseguem perder a sua persuasão de que a Rússia é frágil; de que as suas forças armadas são pouco ou nada competentes; de que a sua economia está a desmoronar-se e que, portanto, Putin aproveitaria qualquer “ramo de oliveira” que os Estados Unidos lhe oferecessem.

A ideia de que o Presidente Xi poderia – ou iria – pressionar Putin a “recuar” na Ucrânia e aceitar um cessar-fogo nos termos da UE – que são os “termos Zelensky” – é ilusória. No entanto, alguns dos principais líderes da UE parecem genuinamente pensar que Putin pode ser forçado por Xi ou Modi a sair da Ucrânia em termos totalmente favoráveis a Kiev. Estes líderes europeus estão simplesmente, de modo perigoso, reféns de processos psicológicos que alimentam o seu negacionismo.

A Rússia está a “vencer” na frente de guerra financeira e na frente diplomática global. Tem vantagem esmagadora em número de forças; tem vantagem em armamento; tem vantagem nos céus e na esfera eletromagnética. Ao passo que a Ucrânia está em desordem, as suas forças dizimadas e o regime de Kiev está a desmoronar-se rapidamente.

Eles não “percebem”? Não. O infindável e amargo antagonismo a Putin e à Rússia permitiu que uma realidade auto imaginada emergisse; que se afastasse cada vez mais de qualquer ligação à realidade e, depois, transitasse para a ilusão – recorrendo sempre a líderes de claque semelhantes para validação e radicalização alargada.

Trata-se de uma psicose grave. Porque, ao invés de tratar o conflito de forma racional, o Ocidente está sempre a inventar “coisas que não funcionam”, como um “conflito congelado“. Será que eles pensam seriamente que a Rússia vai “ficar de braços cruzados” enquanto o Ocidente “ergue” uma representação (proxy) da Otan “armada até aos dentes” no Oeste da Ucrânia? Uma representação que será uma ferida purulenta no lado russo e que sangrará os recursos russos a longo prazo? Será que eles imaginam que a lição do Afeganistão se perdeu no Alto Comando russo? Posso dizer-vos que não está. Eu fui um dos atores daquela tragédia.

E agora? A Rússia vai provavelmente esperar para ver se Kiev é capaz de montar uma ofensiva – ou não. Se Kiev lançar uma ofensiva, faria sentido que a Rússia deixasse as forças ucranianas lançarem-se sobre as linhas defensivas russas e gastarem as suas forças ainda mais, num novo “moedor de carne”. Moscou testará se os patronos de Kiev estão dispostos a reconhecer os “fatos no terreno”, em vez de uma realidade imaginada, aceitando as condições de Moscou. Caso contrário, o desgaste russo pode continuar, e continuar, até à fronteira polaca. Não há outra opção – mesmo que seja a última escolha de Moscou.

O diversionismo dos F-16 não alterará o equilíbrio estratégico da guerra; mas é claro que prolongará a guerra. No entanto, os líderes europeus do G7 agarraram-se à proposta.

O tenente-coronel Daniel Davis, membro sénior da Defence Priorities em Washington, advertiu:

“Não há razão para esperar uma mudança dramática na sorte de Kiev na guerra por causa deles [os F-16]. Mesmo os 40 a 50 jatos que a Ucrânia está a pedir não irão alterar fundamentalmente o curso da guerra. Contudo, a grande questão que “os americanos deveriam estar a perguntar a Biden é esta: com que objetivo? O que é que a Administração espera conseguir com a entrega dos F-16? O que é que esperamos conseguir fisicamente? Que estado final o presidente prevê para a guerra e como é que a presença dos F-16 melhoraria as possibilidades de êxito?

“Tanto quanto posso determinar, estas questões nem sequer foram formuladas, e muito menos respondidas, por funcionários da administração ou do Pentágono” … Washington deveria começar a concentrar-se muito mais em meios concretos para salvaguardar os interesses americanos e acabar com a guerra, e menos em entregas inconsequentes de armas que não parecem fazer parte de qualquer estratégia coerente”.

A mesma questão deve ser colocada à UE: “Com que objetivo?” Será que a pergunta já foi formulada e respondida?

Bem, vamos responder: O que é que os 50 F-16 vão conseguir? Os líderes europeus dizem que procuram um fim rápido para o conflito, mas esta iniciativa vai conseguir exatamente o contrário. Representará mais um marco na escalada em direção à “guerra eterna” contra a Rússia que alguns desejam ardentemente. A Rússia verá então, provavelmente, pouca alternativa a não ser avançar para uma guerra total contra a Otan.

Os europeus parecem incapazes de dizer “não” à América. No entanto, o Coronel Davis avisa claramente que a intenção dos EUA é “transferir o fardo do apoio físico à Ucrânia para os nossos parceiros europeus”. Implicitamente, isto sugere uma “guerra longa” na Europa. Como é que chegámos a este ponto, por amor de Deus? (Por não pensar bem nas coisas desde o início, com a guerra financeira contra a Rússia tão entusiasticamente e irrefletidamente abraçada pela Europa).

Recentemente, o Financial Times escreveu que a Ucrânia tem cinco meses para demonstrar alguns “avanços” aos EUA e a outros apoiantes ocidentais, a fim de os convencer dos seus planos para o conflito com a Rússia: “Se chegarmos a Setembro e a Ucrânia não tiver feito progressos significativos, então a pressão internacional sobre [o Ocidente] para os levar a negociações será enorme”.

Bem, o coronel Davis diz que “há pouca probabilidade de os caças [F-16] verem combate sobre os céus da Ucrânia ainda este ano”. Assim, Biden displicentemente acabou de estender a guerra bem além de Setembro.

Se a Europa quiser um fim rápido para a guerra, tem de esperar que o “projeto” de Kiev imploda em breve. (E pode ser que isso aconteça, apesar dos F-16).

[*] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum com sede em Beirute.

Fonte: strategic-culture.org

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