Identitarismo: mudando tudo para manter tudo como está

constelação

LavraPalavra

Por Rodolpho Borges[1]

Vira e mexe voltamos ao assunto do identitarismo e da representatividade. Não é à toa que isso já virou até um negócio lucrativo. Vamos tratar dessas coisas numa abordagem que seja pouco (ou nada) lucrativa, mas sim, contestadora.

Deixo claro que este é um artigo panfletário. Não esgota nem um pouco o assunto. Para dar sequência, recomento o artigo de Jones Manoel e Douglas Rodrigues intitulado: “Vocês querem um Hitler Negro?[2]”.

Pois bem, tudo que emerge nesse mundo – ideias, movimentos, comportamentos etc. – tem que lidar, naturalmente, com uma força que age de maneira constante: podemos chamá-la de Reprodução da Sociabilidade ou, mais vulgarmente, status quo. São forças que procuram manter as coisas como estão.

As lutas das minorias por emancipação também estão sujeitas a isso. E duas das mais famosas formas ideológicas de expressão de forças que procuram sujeitar essas lutas ao status quo são o identitarismo e a representatividade. A grande vantagem delas é que atuam de dentro para fora desses movimentos.

Pensemos por exemplo na homoafetividade. A primeira força que lhe sujeita é homofobia, expressão da heteronormatividade, que, por sua vez, resulta do patriarcado. Para não ficar abstrato: um homem que violenta um indivíduo homoafetivo: esta é uma forma de expressão do patriarcado. Uma mulher lésbica que sujeita outra a um relacionamento abusivo seria outro exemplo.

Note que a forma com a qual essas forças se exprimem não são determinadas pelo indivíduo, mas se manifestam no nível das relações entre os seres humanos.

Para exemplificar melhor como funcionam as forças que atuam na Reprodução da Sociabilidade, vamos mudar para a questão racial e pensar na Kamalla Harris, candidata a vice presidente pelo partido democrata dos EUA. A campanha desse partido é uma campanha racista, por quê?

Kamalla Harris foi escolhida por ser uma senadora proeminente e por ser negra. Assim, os democratas procuram alcançar os votos das minorias do país, simplesmente porque acreditam que os negros votariam numa negra por ela ser negra. Não importa o fato de que ela é conservadora, sendo que, quando era procuradora, ela praticou uma violenta política de criminalização do uso de maconha, além de manter na prisão pessoas além de suas sentenças e lutou para manter o sistema de pagamento de fianças com dinheiro. Todas essas são políticas que impactam sensivelmente a vida das minorias: negros, imigrantes e pobres.

Ou seja, a candidatura de Kamalla Harris serve, em primeiro lugar, para a seguinte coisa: dar legitimidade para a violência do Estado estadunidense contra as minorias daquele país, para manter as coisas como estão – e isso inclui bombardear populações civis de outros países em razão do imperialismo.

Outro bom exemplo. “Maju” Coutinho foi elevada a âncora do Jornal Hoje da Rede Globo. Essa rede de televisão foi a principal responsável pela campanha a favor da reforma da previdência; além disso, seu jornalismo atua constantemente cobrando eficiência na aplicação das políticas neoliberais.

Maju Coutinho, no que pese sua competência profissional, o que eu não vou questionar, está diariamente na televisão veiculando propaganda para políticas que retiram as condições mínimas dos trabalhadores brasileiros para uma vida digna. Ela, então, serve ali para legitimar a ideologia dominante. Do que adianta alçar a Maju a inspiradora dos negros e das negras, fazê-los acreditarem na possibilidade do sucesso no mundo capitalista e, pelas costas, tirarem todas as oportunidades e chances reais de que isso aconteça?

O identitarismo, ou seja, a redução de tudo ao nível da identidade do indivíduo, nada mais é que uma força que procura mudar a aparência de tudo para que tudo continue como está. Ou seja, eternizar a vil exploração, a desigualdade profunda, a miséria na qual agoniza grande parte do nosso povo, a fome, a violência constante e a opressão. Já a representatividade, por si só, não é capaz de mudar nada no mundo concreto. Apenas se vier como o passo inicial de uma transformação contestadora do capitalismo.

Estejam sempre atentos se o discurso e a prática do representante realmente se contrapõe ou apenas reforça o status quo. Se tal pessoa quer mudar o mundo ou apenas quer uma vaguinha para ele nesta sociedade excludente. Quem muito afirma seu “lugar de fala”, geralmente, é porque não tem nada mais a dizer. No mais, esmaguemos o racismo, o patriarcado e a heteronormatividade. E suplantemos o liberalismo de nossas fileiras!

[1] Rodolpho Ferreira Borges é militante do PCB e graduando em história. Pesquisa sobre o conceito de progresso a partir do materialismo histórico dialético e sobre a luta dos Sem-Terra no Sul de Minas.

[2] Disponível em: https://lavrapalavra.com/2019/06/22/voces-querem-um-hitler-negro-critica-ao-black-money/

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