Sputnik V: O veto geopolítico do Norte

guerra hegemônica
Cezary Kowalski/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

Por Fabio Reis Vianna

A escandalosa cortina de fumaça representada pela recusa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em recomendar o uso da vacina russa Sputnik V e o veto “técnico”, minuciosamente detalhado em relatório elaborado por “especialistas imparciais e comprometidos com a ciência”, esconde algo que, compreensivelmente, escapa ao conhecimento do público brasileiro.

Acostumada a aceitar explicações endossadas por “autoridades no assunto” e acostumada a entender a realidade das coisas por um prisma interno, a sociedade brasileira ainda não se deu conta da encruzilhada histórica em que se encontra nosso país e que isso tem muito a fazer. com a grande disputa do grande jogo sistêmico global deste novo século, que se mostra violento e sem regras claras (ou seja, sem regra alguma).

Aprovado e utilizado em mais de 60 países, o Sputnik V, apesar de não ter apresentado efeitos colaterais graves relatados até o momento, há meses vem sofrendo imensas dificuldades burocráticas para ter seu uso aprovado em território brasileiro.

Com mais de 400.000 mortes contadas até agora, e uma sociedade dividida e em conflito em torno de um governo liderado por um incendiário radical de extrema direita, a recusa da vacina russa Sputnik V representa um reflexo desses tempos estranhos que praticamente todos os países do sistema interestadual estão passando, mas que a cortina de fumaça do tempo presente nos impede de ver com mais clareza.

A disputa está sendo travada abertamente pelas três potências atuais do sistema, a saber, Estados Unidos, China e Rússia – e também por outras potências menores – e à medida que o aumento da pressão se espalha para além das regiões tradicionais onde a competição costumava ocorrer, fica mais claro que o que está ocorrendo no sistema difere da lógica convencional no que Hedley Bull chamaria de Sociedade Anárquica.

Em outras palavras, o consenso mínimo que estaria em vigor em uma sociedade de Estados, e que possibilitaria a preservação de um respeito mútuo por certas instituições e normas, estaria, neste exato momento, enquanto escrevo, estaria morto.

E não só porque os Estados Unidos teriam, na prática, indicado essa morte em sua Estratégia de Segurança Nacional 2017 – bem como na mais recente estratégia provisória de Biden, publicada em março – mas porque, ao que parece, o movimento agressivo revelado por muitos países após a eclosão da pandemia nos leva a intuir que o mundo já estaria imerso naquela lógica sistêmica que Robert Gilpin chamaria de estado de Guerra Hegemônica.

Segundo Gilpin, e inspirado por Tucídides, a guerra hegemônica seria diferente da guerra convencional por sua capacidade de transformação estrutural. Diante disso, necessariamente, todos os estados individuais acabariam envolvidos por uma concepção sistêmica em que ninguém ficaria imune.

Portanto, além da escalada notável que o aumento da competição interestadual já vinha proporcionando desde meados da década de 2010, as incertezas e a instabilidade causadas pela pandemia de Covid-19 exacerbaram ainda mais o problema.

Assim, quanto mais os Estados Unidos são desafiados em sua hegemonia e perdem espaço para a Rússia e a China na Eurásia, mais buscarão enquadrar os países que fazem parte de sua estreita zona de influência: a América Latina.

Não por acaso, e ainda no governo Trump, houve pressão explícita e já oficialmente revelada sobre o Brasil para dificultar ao máximo a aprovação da vacina Sputnik V.

Por mais que se diga que o grande adversário dos Estados Unidos já seria a China, historicamente – e desde os tempos do Império Britânico – a Rússia desempenha o papel de inimiga necessária e norteadora do único consenso fundamental das elites hoje tão divididos Estados Unidos: a expansão permanente e infinita do complexo industrial militar.

Nesse contexto, portanto, não seria exagero pensar que o Brasil estaria no olho do furacão de um processo de escalada da guerra hegemônica causada, sobretudo, pela possível mudança de ciclo que o sistema mundial estaria no momento testemunhando. No aqui e agora.

A questão que fica, portanto, é: o risco de cair na armadilha de Tucídides é iminente nos próximos anos, ou a própria pandemia já é uma armadilha de Tucídides, e ainda não sabemos disso?

Fabio Reis Vianna, mora no Rio de Janeiro, é bacharel em direito (LL.B), mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Évora (Portugal), escritor e analista geopolítico. Atualmente mantém uma coluna sobre política internacional no centenário jornal brasileiro Monitor Mercantil.

Fonte thesaker

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