Tempos sombrios, tempos de ternura

Mesmo o ódio justo transforma as feições e torna rouca a voz, embrutece a alma e pode aviltar os fins éticos justos. Neste momento é necessário um distanciamento muito difícil para que não nos percamos na lama destes tempos sombrios. Talvez seja esta a dimensão ética que nos distingue da barbárie e que impede que nos misturemos à mesma lama de ódio que ela secreta.

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Gregório Bezerra, preso no pátio do Quartel de Motomecanização em Casa Forte, Recife (abril de 1964). Foto de capa do livro Memórias, de Gregório Bezerra (Boitempo, 2011).

Por: Mauro Iasi

“Posso compreender que um homem aceite as leis que
protegem a propriedade privada e admita sua acumulação,
desde que nessas circunstâncias ele próprio seja capaz de atingir
alguma forma de existência harmoniosa e intelectual.
Parece-me, porém, quase inacreditável que um homem cuja existência
se perdeu e abrutalhou por força dessas mesmas leis possa
vir a concordar com sua vigência […] devem ser muito tolos”

Oscar Wilde, A alma do homem sob o socialismo

A ninguém é dado escolher os tempos em que vive. O que chama a atenção em nossos tristes tempos é o grau que atingiu aquilo que Oscar Wilde, na frase que nos serve de epígrafe, denominou de “abrutalhamento”. Atingimos um tal ponto de irracionalismo que, por vezes, fica difícil distinguir algum traço humano na brutalidade dos tempos.

Entretanto, todo tempo tem suas brutalidades e suas ternuras, mesmo os mais dramáticos como o fascismo e a guerra, mesmo a barbárie da civilização reluzente do capital em sua agonia histórica na qual pululam os tolos a se regozijar da ordem que os escraviza e massacra.

Em algum momento nestes nossos tempos brutais vemos pessoas abdicando dos fiapos de sua humanidade ao festejar torturadores, ao comemorar a morte de uma mulher corajosa, o olho arrancado de uma menina pela brutalidade da polícia, o rosto coberto de sangue de uma professora, o corpo queimado de um índio. Em tempos como esses, desconcertados, presenciamos a insensibilidade de celebrar a morte de uma criança de sete anos pelo ódio insano contra seu avó.

Afirmei antes e reafirmo agora que não acredito em dialogo com a barbárie, tenho a serena convicção que devemos ser intolerantes contra a intolerância, o preconceito e o irracionalismo da extrema direita. Entretanto, uma questão se apresenta diante de nós: nosso direito ao ódio contra o ódio, o sagrado dever de resistir contra a violência, pode nos assemelhar aos nossos inimigos?

Como disse, em um velho poema, “quando nascer o dia e limparmos da varanda os morcegos mortos, teremos que ter todo o cuidado para não estar entre eles” (Metamorfases, São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 71). Não creio que a violência (e o ódio) tenha um conteúdo em si mesmo, mas a ela se agrega dimensões morais e éticas distintas. Como colocou Marx, a violência é uma forma que se apresenta no momento em que as sociedades morrem e novas formas sociais germinam em suas entranhas. Nos contornos desta transição, há o ódio dos poderosos contra aqueles que os ameaçam, mas existe o ódio dos oprimidos contra aqueles que os dominam e contra a ordem que representam. Extirpar o ódio dos oprimidos é favorecer a paz dos opressores, “não é paz… é medo”.

Sabemos, no entanto, como Brecht, que mesmo o ódio justo transforma as feições e torna rouca a voz, embrutece a alma e pode aviltar os fins éticos justos. Neste momento é necessário um distanciamento muito difícil para que não nos percamos na lama dos tempos sombrios.

Uma pequena história pode nos esclarecer este ponto. Tenho um camarada que para mim e muitos de nós é uma referência, um exemplo de vida e militância comunista. Seu nome é Anibal Valença, e ele me contou certa vez a seguinte história. Na época do golpe de 1964 ele foi preso junto com seu pai, também destacado militante do PCB de Pernambuco. Na mesma ocasião foi preso Gregório Bezerra, que atraia particularmente o ódio de seus algozes por tudo que representava, por sua altivez e dignidade sem par.

Algum tempo depois, já fora da prisão, os dois estavam com alguns camaradas em um bar quando uma pessoa que mal continha sua alegria comunicou-lhes a notícia de que o delegado e torturador responsável por seus encarceramentos havia morrido. Diante do comunicado, ensaiou-se um grito de alívio e uma pequena salva de palmas. Gregório Bezerra, que estava presente, manteve-se sério e repreendeu seus camaradas dizendo:

“Não façam isso. Mesmo o inimigo mais indigno tem uma família, esposa e filhos que agora sofrem com sua morte. Devemos respeitar sua dor”.

Talvez seja esta a dimensão ética que nos distingue da barbárie e que impede que nos misturemos a mesma lama de ódio que ela secreta. Um resto de ternura, não por nossos inimigos, mas uma dimensão que resiste em sua humanidade mesmo diante das mais evidentes brutalidades.

Essa ternura passou por nós agora, vestida de verde e rosa. Os opressores, apequenados diante da grandiosidade redentora do cortejo, só viam rancor, ódio e vingança. Mas, em meio a força do canto e das lágrimas que o regavam, eu via uma ternura infinita e uma generosidade sem igual. Nada parecido com o esquecimento ou o perdão cristão, mas uma redenção distinta que expondo todo o sangue, a ignomínia, a brutalidade do látego, a bota assassina da ditadura e seus cúmplices, pudesse redimir todo uma país de seus crimes e sua vergonha. Um violento ato de ternura que os abrutalhados e tolos jamais entenderão.

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