Um projeto de destruição nacional e a necessária mudança de rumo

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Por Allefy Matheus

Em 2016, durante o governo de Michel Temer e na contramão de inúmeras manifestações de resistência popular, entrou em vigor no Brasil o chamado Novo Regime Fiscal (NRF), através da Emenda Constitucional 95 [1]. O NRF estabeleceu um teto para os gastos reais primários do governo federal, baseado na correção dos mesmos pela inflação, para no mínimo 10 anos adiante.

À época, diversos analistas apontaram que o NRF era simplesmente insustentável a médio prazo, dado que, pelo crescimento de certas despesas derivado das transformações na própria sociedade brasileira (como o crescimento populacional e a transição demográfica), certas despesas teriam de ser esmagadas [2]. Os economistas e professores Pedro Rossi (UNICAMP) e Esther Dweck (UFRJ) mostraram, em artigo, que mesmo com uma estabilização otimista dos gastos com a Previdência em 8,5% do PIB, seria impossível aumentar os gastos com saúde e educação (em % do PIB) — certamente necessários para gerar as transformações que o povo exige nos dois setores –, mesmo supondo ser possível praticamente eliminar todos os outros gastos [3].

Para outros analistas, a EC 95 era apenas uma sinalização de curto prazo (pois que, também para eles, o NRF seria inviável a médio prazo) do compromisso do governo com o “equilíbrio fiscal’’, servindo também como meio de pressionar o Congresso e a sociedade civil a se posicionar a favor da reforma da Previdência. O governo, entretanto, não conseguiu implementá-la, e a armadilha foi jogada para o sucessor… que, com o resultado das urnas no dia 28/10/19, acabou por ser Jair Bolsonaro.

Desmonte turbinado

Já desde antes de eleito, Bolsonaro explicitou que seu principal nome para a área econômica era o Chicago Boy do mercado financeiro Paulo Guedes. Após praticamente passar todo o período de campanha sem comparecer a debates, Bolsonaro, eleito, explicitou seu compromisso com a aprovação de determinadas ‘’reformas estruturais fundamentais’’ numa direção liberal: mais abertura comercial, privatizações, redução de gastos públicos etc., sendo a reforma da Previdência sua menina dos olhos desde o início.

Na proposta do governo, o modelo (muito bem sucedido) de Previdência social em regime de repartição seria substituído por um modelo de capitalização individual; em outras palavras, o governo pretende transformar o benefício de aposentadoria — vital para o sustento de idosos e mesmo de lares como um todo — em lucros para o setor bancário, garantidos pela redução geral dos benefícios. Além da questão da mudança de modelo — que aliás acarreta para o Estado enorme custo fiscal de transição, uma vez que os já aposentados continuam recebendo suas aposentadorias pelo modelo social e os futuros aposentados não mais contribuirão para a Previdência social –, a proposta traz medidas draconianas como a elevação do tempo mínimo de contribuição e a igualação do método de cálculo dos benefícios para os gêneros masculino e feminino, o que, na prática, fará com que os trabalhadores mais pobres (cuja renda torna difícil a contribuição) se aposentem mais tarde — caso consigam se aposentar –, assim como tende a reduzir os benefícios das mulheres (cuja renda geralmente é menor que a dos homens devido a problemas de preconceito de gênero e trabalho reprodutivo e doméstico).

Além disso, o governo continuou realizando cortes em gastos importantes, como despesas de custeio relacionadas às áreas da saúde e educação e também investimentos públicos — sem jamais pôr em questão a viabilidade do NRF. Para coroar a tendência austericida do governo, recentemente o ministro da educação, após acusar UFF, UFBA e UnB de não buscarem melhorar em termos de ensino, pesquisa e extensão por praticar balbúrdia, cortou orçamentos discricionários de instituições federais de ensino superior (uma delas, em cerca de 52%), dos institutos federais, dos hospitais universitários, do FIES e da educação básica, aliás contradizendo o seu discurso sobre realocar recursos ‘’excessivos’’ do ensino superior para a educação básica. Cinicamente, o ministro afirmou que, caso a reforma da Previdência venha a ser aprovada, ele poderá restabelecer os orçamentos inicialmente previstos.

O discurso oficial é de que as medidas ‘’não foram por maldade’’ (sic), mas sim uma consequência da Lei de Responsabilidade Fiscal e dos problemas fiscais nos quais (o governo crê que) o país se encontra. Trata-se de uma meia-verdade: após estagnar durante o governo Dilma I (2011-2014), o crescimento do investimento público tornou-se negativo entre 2015 e 2018 e continuou sofrendo queda neste ano, parcialmente como consequência do NRF, estando no menor nível da série histórica recente. Entretanto, essa queda, além de não ajudar a economia brasileira a superar a depressão em que se encontra desde 2015, cria um problema para o governo que está associado à ‘’regra de ouro’’ da política fiscal: é vedado ao executivo realizar operações de crédito em montante superior aos das despesas de capital, com exceções condicionadas à aprovação da maioria no Congresso. Ou seja: o governo já cortou tanto o investimento público que, agora, para não descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, precisa cortar despesas de custeio.

Em outras palavras: como consequência de uma camisa de força que colocou em si mesmo (a EC 95 e o consequente NRF), o governo agora ‘’precisa’’ cortar despesas da mais alta importância apenas para cumprir formalidades jurídicas. Ou nem tanto, já que esse projeto de austeridade fiscal e privatizações significa, por um lado, a abertura de novos mercados para o capital privado (que apoiou massivamente o capitão nas eleições e desde antes) e, por outro, o contínuo inchaço do exército de desempregados, que pressiona as condições de vida dos trabalhadores que ainda têm seus empregos para baixo.

Vale ressaltar que, como atestam os estudos em História Econômica, o investimento em ciência e tecnologia, que no Brasil passa fundamentalmente pelo investimento nas universidades públicas, foi fundamental para todas as trajetórias de desenvolvimento econômico e modernização produtiva nacionais até hoje, sem exceções, como podem atestar os exemplos de dois países radicalmente distintos: EUA e China.

Somando-se todos esses projetos diretamente vinculados à ‘’área econômica’’ (como a não citada até agora, e profundamente prejudicial para os trabalhadores, reforma trabalhista) a projetos de expropriação da natureza (como a atuação do governo Temer e de Bolsonaro nas pautas relativas ao meio-ambiente e ao ecossistema nacional), ao embrutecimento exponencial das políticas de ‘’segurança’’ pública, tem-se que o governo Bolsonaro representa a continuação, embora radicalizada para piorar tudo, de um projeto de reorganização da economia e do sistema político nacionais, buscando expropriar patrimônio coletivo do povo brasileiro e intensificar a taxa de exploração, aumentando a pobreza e a concentração de renda e riqueza às custas da violência necessária para reprimir os trabalhadores e movimentos sociais. Projeto cuja implementação foi tornada possível pelo estelionato eleitoral praticado pela ex-presidente Dilma em 2015, bem como pelo apassivamento dos movimentos populares, pela burocratização dos sindicatos, por alianças de conciliação com os parasitas das classes proprietárias nativas e imperialistas, enfim: pelos limites do reformismo petista.

Agora, cabe aos militantes comprometidos com os interesses da classe trabalhadora brasileira se reorganizar, desmentindo publicamente a ilusão de que o Estado burguês brasileiro é um espaço adequado e/ou suficiente para a defesa daqueles interesses, pautando a organização revolucionária, ao mesmo tempo em que devemos pôr à mesa o máximo projeto social da classe trabalhadora, historicamente: o socialismo e, com ele, todos os frutos em termos de desenvolvimento das forças produtivas e da satisfação das necessidades humanas — tudo o que o horror do capitalismo concreto do nosso tempo e da nossa posição subordinada no sistema imperialista mundial definitivamente não podem nos dar.

Fonte: PCB

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