Engels e Lênin na América Latina ontem e hoje

revolucionários

BLOG DA BOITEMPO

Por Marcos Del Roio

A atual crise do capital, que ameaça a própria sobrevivência da humanidade, dá nova vida à obra desses dois gigantes na luta pela liberdade.

O ano de 2020 desde já fica como um marco na história, quando um vírus assombrou a Humanidade e induziu a necessidade das pessoas se manterem afastadas umas das outras, a necessidade de se cobrir o rosto, de se expressarem apenas por meio das telas da tecnologia eletrônica. Mas se observarmos mais de perto essa é já uma tendência que vem mais de longe, talvez desde os anos 80 do século passado, quando a desintegração dos sujeitos coletivos conformados em organizações políticas, econômicas, culturais começou a proceder velozmente em torno da inovação tecnológica e de uma concentração de hegemonia por parte do capital. Estados sempre mais controladores e repressivos e com crescente eliminação de direitos sociais, relações sociais fundadas em extremado individualismo, tudo conforma o ambiente de uma regressão cultural sobre a qual o obscurantismo avança. Esse ano de 2020, que evidenciou uma crise assim profunda, é também um ano propício para resgatar a lembrança dos 200 anos de nascimento de Friedrich Engels e os 150 anos do nascimento de Vladimir Lênin. Terão eles a nos dizer algo nessa situação que clama a luta, no limite, pela sobrevivência da humanidade?

Nesse cenário mundial a América meridional oferece a sua contraditória contribuição. Essa vasta e diversificada região se conformou, desde o século XVI, com a invasão e ocupação europeia, como um Ocidente subalterno, no qual a dominação colonial se estabeleceu sobre os povos indígenas e sobre os povos transplantados da África pela força. A ideologia católica reformada serviu de instrumento dessa ocupação, que gerou formas sociais heterogêneas, onde conviviam formas de escravismo e de feudalismo. A riqueza assim gerada serviu, em grande medida, para garantir a acumulação originária do capital, que então ocorria na Europa.

Essas formas sociais foram terrivelmente duradouras. A formação de Estados territoriais por toda essa área serviu apenas para internalizar a dominação colonial. O afastamento de Espanha e Portugal do continente logo deu lugar a disputas entre oligarquias regionais formadas em torno dos interesses coloniais que se procurava agora substituir. Os povos submetidos secularmente – fossem os indígenas sobreviventes do secular genocídio, fossem os africanos que continuaram a chegar ainda por algum tempo como escravos – só tiveram voz quando das explosões de rebeldia. A persistência da exploração e da opressão dentro dos Estados formados segundo os interesses de oligarquias geradas no decorrer do domínio colonial possibilitou que a forma da subalternidade da Indo-Afro-América fosse redefinida. Estados “nacionais” miméticos e ficticiamente soberanos passaram a gerir a persistente relação colonial às custas dos povos originários e dos transplantados da África, aos quais se juntariam mestiços e migrantes pobres.

Quando a fase imperialista do capitalismo teve início, em torno de 1880, essa forma de produção da riqueza e de exploração da força de trabalho começou a se internalizar no continente em alguns lugares de alguns países, em particular no México e no Cone Sul. O tema do imperialismo se colocou no debate europeu em torno da sua utilidade (para os imperialistas) ou de sua validade ética, de uma pretensa missão civilizadora do Ocidente. Esse debate tomou conta também do movimento socialista, com posições diferenciadas no seio dos intelectuais que pensavam e elaboravam a ideologia socialista. Foi Lênin, no entanto, que em livro de 1916, O imperialismo como fase superior do capitalismo, ofereceu uma síntese que, sem dúvida, é válida até hoje.

Para Lênin, o imperialismo não era apenas uma escolha política dos governos, o imperialismo era sim uma fase de desenvolvimento do capitalismo na qual as contradições do movimento do capital se agravavam. Formava-se uma oligarquia financeira, que passava a ser a classe dominante nos países capitalistas mais avançados, avançava a concentração e centralização do capital ao modo de monopólios, uma disputa crescente por fatias do mercado mundial, que implicava na exportação de capitais. Com a importação de capitais é que o capitalismo começa a se desenvolver na América meridional (de modo muito desigual, bom que se insista). Tem início a formação de uma burguesia interna e de um gérmen de proletariado. O proletariado que se forma é, em grande parte, originado das regiões da Europa onde o acesso à terra era dificultado ao máximo e o capitalismo era relativamente atrasado. Mas com os migrantes a mancha do capitalismo começa a se espalhar e também a resistência à exploração.

Lênin, em 1916, era conhecido apenas nos círculos marxistas socialistas da Europa, mas ainda não reconhecido como grande teórico e estrategista da política revolucionária que foi. Passados mais três anos, o nome de Lênin já corria de boca em boca por quase todo o mundo, inclusive grande parte da América chamada de Latina. Com o nome de Lênin é que o marxismo, determinado marxismo, começou a se difundir pelo continente.

Qual marxismo? Ainda que logo na sequência da morte de Engels, em 1895, o seu nome tenha sido acoplado ao de Marx como se fosse um dupla que havia composto uma obra única, o fato é que forma autores diferentes, com agendas de estudo e pesquisa diferentes, mesmo que tenham sempre colaborado um com o outro. Nos 12 anos que sobreviveu a Marx, Engels compôs o marxismo como pensamento mais seu do que de Marx. Uma análise apurada de seus escritos em comparação com os de Marx mostra bem a diferença em diversos pontos, em particular aqueles relativos à dialética. Marx fundou uma nova dialética negando a dialética de Hegel, Engels apenas despiu o invólucro idealista da dialética de Hegel. O marxismo fundado por Engels nos anos 80-90 do século XIX teve em Kautsky o seu principal continuador e difusor. Ao se difundir, o marxismo também se diversifica e se adapta ao novo ambiente, de modo que o marxismo é sempre determinado pelas condições sociais e culturais com as quais se encontra.

Quando da morte de Engels, na Rússia, um jovem com os seus 25 anos, publicou um artigo no qual reconhecia o enorme mérito de Engels na composição da obra revolucionária que o proletariado encarnava. No marxismo que se formava na Rússia, Engels oferecia o substrato filosófico e político no qual Plekhanov se amparou para introduzir o marxismo na Rússia. Eis que se formava o elo Engels-Plekhanov-Kautsky-Lênin. Mais tarde Lênin romperia com Plekhanov e com Kautsky, mas o laço com Engels permaneceu sólido, fosse no livro Materialismo e empiriocriticismo (1909) ou em O Estado e a revolução (1917).

Na América Latina, os nomes de Marx e de Engels eram conhecidos por poucos desde os anos 80 do século XIX, mas em geral vinham dentro de um cesto que continha outros frutos das ideologias cientificistas e naturalistas da Europa burguesa. Entre os primeiros socialistas eram vistos por meio de uma leitura reformista justificada pelo atraso do capitalismo e pela escassez numérica do proletariado industrial. Ora, sem um capitalismo ao menos razoavelmente desenvolvido e um proletariado industrial numericamente expressivo, segundo certa leitura do marxismo, não havia como se pensar em revolução, apenas na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e na sua representação política.

A revolução russa eclodiu numa conjuntura de guerra imperialista e de rebelião universal do mundo do trabalho e dos povos oprimidos. Muitos países de todos os continentes foram palco de revoltas, rebeliões, revoluções, Nuestra América incluída. México, Argentina, Chile, Brasil assistiram greves de massa, manifestações e confrontos com o Estado das oligarquias. Essa movimentação acabou derrotada em todo lugar, mas abriu espaço para a difusão do marxismo, determinado marxismo, aquele produzido pela teoria e prática dos bolcheviques russos, pelo pensamento de Lênin. Afinal, foi Lênin o primeiro teórico e militante do movimento operário a colocar em pauta a necessidade da emancipação dos povos dominados pelo imperialismo na forma de colonialismo. A Internacional Comunista, fundada em 1919, por partidos revolucionários formados em meio a batalha pela defesa e difusão da revolução socialista surgida na Rússia, aos poucos se espalhou pela maior parte do globo. A concepção de Lênin da necessidade de uma organização internacional solidária que estimulasse e apoiasse toda luta social das classes e regiões subalternizadas contribuiu para a fundação de partidos comunistas na América Latina. A primeira onda (1918-1925) cobriu Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, México e Cuba. Uma segunda onda alcançou a América andina.

Além da lição de que a luta pela emancipação do trabalho se vinculava à luta pela emancipação nacional, Lênin também mostrou a importância da organização disciplinada no partido revolucionário. Os partidos comunistas não foram, por suposto, as únicas organizações que visavam a constituição efetiva de um povo/nação e de um Estado democrático nos diferentes países, mas é importante dizer que, mesmo que impotentes para assumir a direção do processo que endereçou todo o continente para o capitalismo – um capitalismo que reproduziu e atualizou o estatuto colonial e as estruturas internas de poder –, os partidos comunistas contribuíram para fazer as classes subalternas expressarem as suas reivindicações.

Os limites principais desses partidos estão ligados ao limitado conhecimento da realidade que se queria transformar e ao limitado conhecimento das obras teóricas de Engels e Marx, mas também de Lênin. De fato, o marxismo foi vitimado por certa estagnação e redução a fórmulas doutrinárias. Vale então lembrar que o marxismo que alcançou a América Latina foi uma ideologia fundada por Engels, refundada por Lênin e congelada com Stalin e parcialmente hibridizada com o positivismo.

As implicações políticas desses limites se mostraram com força a partir dos anos 60 do século XX. Houve uma busca pela renovação teórica e houve uma grande diversificação de organizações que se diziam marxistas, mas a derrota de todas as variantes foi quase completa na passagem dos anos 70 para os 80. Ditaduras militares cruéis se instalaram na América Latina para impedir que a revolução burguesa – que procedia pelo alto, tendo o Estado como sujeito – se transformasse em revolução democrática.

Nos anos 80 do século XX começou o processo de instauração de democracias liberal-burguesas, que se fez articulado com o projeto de uma sociabilidade neoliberal, ultra individualista e contrária a qualquer forma de organização popular. As classes dominantes pretendiam agora consolidar o seu poder e expressar isso em primeira pessoa, como proprietários, como empresários, sem a necessidade mais da instituição militar. A intenção era mesmo que a democracia e os direitos sociais não passassem de ficção.

Talvez o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, tenha sido a última experiência de uma época na qual a vanguarda era a classe operária fordista, mesmo que marcada por forte corporativismo sindical, que não ultrapassa o talhe liberal, como demonstrado quando chegou ao governo do Estado brasileiro (2003-2016). A crise orgânica dos partidos comunistas e da ideologia marxista que lhes eram constitutivas deixou as classes subalternas parcialmente desarmadas. A vitória ideológica do capital com a sua proposta neoliberal incluiu a demolição dos institutos do movimento operário, sindicato e partido (com a marcante exceção do PT) e também de seus símbolos. A vítima maior foi a figura de Lênin, em particular depois da vitória reacionária neoliberal no que fora a Europa oriental e as democracias populares. Tudo se passou como se fosse Lênin o responsável pelos descaminhos dessa importante experiência histórica.

Um grande desafio se apresentou (e ainda se apresenta) às classes subalternas deste Ocidente meridional. Nas condições de declínio histórico do capitalismo, uma grande ofensiva contra os trabalhadores foi empreendida com o revestimento da ideologia e economia política dita neoliberal. Desde logo ficou claro que uma revolução democrática com o objetivo de desenvolver um capitalismo autônomo com eventual participação de franjas da burguesia era algo que não havia mais como se sustentar. Tentou-se um novo começo por diversos caminhos, na maior parte com o descarte do marxismo, como se certo marxismo derivado da ideologia do Estado soviético refletisse o pensamento de Marx.

Esses caminhos foram genericamente chamados de movimentos sociais, que na verdade são fragmentos da luta popular de resistência. São movimentos pela terra, pela moradia, pelo ambiente, pelos direitos das diferentes sexualidades, dos povos originários, dos descendentes de escravos. Deixou-se lado o eixo fundamental da luta, aquela capaz de unificar toda essa diversidade, que é a luta do trabalho contra o capital. A maior parte dessas lutas sociais não ultrapassa a perspectiva do direito e da justiça, de modo a permanecerem no horizonte ideológico do mundo burguês, mesmo que aqui e acolá se fale de socialismo. Os institutos históricos do movimento operário, sindicato e partido, continuam a perder força e influência com a persistência do desgaste de uma crise que é orgânica.

O Brasil foi o último dos países do continente a abraçar o neoliberalismo. A burguesia ainda buscava outros caminhos. A força do movimento democrático possibilitou a emergência de um forte movimento operário sindical, seguido por um movimento de luta pela terra. A formação do PT, da Central Única dos Trabalhadores e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, mais que o começo, demarcava o fim de uma era. O PT logo se homologou à nova ordem (congresso de 1981), assim que essa se definiu após o chamado “consenso de Washington” (1989). Importante dizer que o quase vazio na esquerda orientada pelo marxismo foi coberto pelos católicos da “teologia da libertação”.

A mais clara expressão de oposição dentro da nova era que começava (era neoliberal ou era da barbárie) foi a emergência do EZLN no México: um movimento do povo maia pela autodeterminação dentro do Estado mexicano, pelo resgate da terra e da vida comunitária. Os povos indígenas da América andina seguiram também o caminho da organização e da luta, sempre tendo por fundamento seus direitos históricos e sua tradição cultural. Equador e Bolívia foram exemplos expressivos, assim como a Venezuela e Chile, menos Colômbia e Peru. O exemplo mais bem sucedido foi mesmo a Bolívia, com a ideologia do bem viver, do resgate das tradições comunitárias dos povos indígenas dos Andes e que chegou ao governo.

Mas talvez a mais promissora movimentação de força social – e que tem caráter universal – tem sido o movimento das mulheres. Gigantescas manifestações femininas na Argentina, Chile, México, Brasil, a participação das mulheres na vida pública vem carregada de enorme potencial transformador em sociedades brutalmente machistas.

Contudo, em todos esses movimentos, como já foi dito, há uma limitação de caráter ideológico de grande dimensão, pois continuam submetidos à filosofia neoliberal e pós-moderna do mundo, uma concepção de mundo fragmentado, composto por singularidades. Essa ideologia pós-moderna de esquerda se manifesta com frequência em demandas por ações “afirmativas”, políticas de Estado focalizadas em setores sociais, sem a necessária universalidade.

Todavia é também verdade que nessa época neoliberal na qual a barbárie germina e floresce, o conhecimento da obra de Marx e de alguns dos autores mais importantes que se puseram na sua trilha cresceu bastante. Fontes primárias e publicações se multiplicaram, estudiosos dedicados e sérios surgiram em vários lugares. Acontece que essa massa intelectual se encontra descolada do movimento popular, o qual, por sua vez ignora, quando não repele esse conhecimento que tem dificuldade em se fazer prática. Mas é exatamente da prática que se deve partir, da experiência acumulada, da rebeldia esporádica do senso comum, que explode em raiva, não do senso comum que naturaliza ou transfere a algum deus a responsabilidade pela exploração social. Então há que se retomar, conhecer a experiência de lutas anteriores de lutas pela liberdade dos trabalhadores escravos, servos e assalariados, das mulheres, dos povos. A memória é fundamental para a construção do futuro, assim como é a cultura.

Mas o que pode mesmo significar lembrar autores como Engels e Lênin que viveram em outros tempos, em outros espaços? Engels tem obra importante e vasta que aborda várias áreas do conhecimento, algumas das quais abriram um caminho muito promissor, mas talvez tenha sido o mais importante, nos anos que se passaram depois da morte de Marx, o seu papel de efetivo fundador do marxismo como ideologia do movimento operário, o seu trabalho na difusão do marxismo, na educação da classe. Engels se dava conta da necessidade de agrupar e educar a classe operária para a revolução, num trabalho árduo e longo dada a força que o capital e o seu Estado contavam ao se encerrar o século XIX. Foi Engels a afirmar que a emancipação do trabalho estava associada à emancipação da mulher, isso num momento em que esse tema era tratado ainda de maneira muito embrionária no movimento operário socialista.

De Engels, Lênin preservou a necessidade da organização disciplinada, da educação, do estudo sistemático e paciente. Lênin realmente inovou na análise de uma realidade particular, concreta como necessidade para o empreendimento da transformação social e também na teoria da ação política, da necessidade de um órgão operador da política revolucionária. A revolução de 1917 demonstrou, com os sovietes, a capacidade de auto-organização e autogoverno das massas, mas a ênfase do último Lênin foi a necessidade de uma revolução cultural que preparasse a transição socialista. Muitos dos temas mais instigantes e atuais tratados por Engels e Lênin foram desenvolvidos por Gramsci – que cumpre 130 anos de nascimento em 2021 – nos seus Cadernos do Cárcere, com sua usual postura dialógica.

Os 200 anos do nascimento de Engels e os 150 anos de nascimento de Lênin são um momento para que resgatemos a enorme contribuição científica e prática política desses personagens, que contribuíram e instigaram a luta de milhares, milhões de homens e mulheres que se entregaram à obra da revolução em meio a incontáveis e terríveis sofrimentos, que ousaram lutar para construir um mundo novo e uma nova humanidade. Os fracassos foram muitos, mas a esperança que move a luta continua viva.

A atual crise do capital, que ameaça a própria sobrevivência da humanidade, dá nova vida à obra desses (e de muitos outros) gigantes na luta pela liberdade. Engels e Lênin novamente se tornam leitura indispensável para alimentar a vontade de luta contra a barbárie que avança cotidianamente, mas também e principalmente para oferecer lições de organização, de disciplina e mostrar a necessidade de concentrar forças, de aprender, de estudar, de travar a luta ideológica, que é ao mesmo tempo a luta pela verdade e pela emancipação humana. Esses dois grandes revolucionários têm muito ainda a dizer para que o movimento de massas na América Latina seja levado a bom porto com a travessia árdua de superação da pesada herança colonial e de exploração abusiva de um capitalismo predatório, que só pode ser substituído por um caminho que leve à transição socialista.

Marcos Del Roio é professor titular de Ciências Políticas da UNESP-FFC e autor de Os prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926) (Boitempo, 2019), além de integrar o conselho editorial da coleção Arsenal Lênin, da Boitempo.

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