A total incompatibilidade do bolsonarismo com qualquer verniz de civilização, sobretudo em relação à arte e à ciência, foi exibida outra vez na segunda-feira (23/09), quando uma pulga nomeada para diretor de artes cênicas da Funarte, um certo Alvim, chamou Fernanda Montenegro de “sórdida” e “mentirosa”.
O motivo foi um ensaio fotográfico, em que Fernanda aparece caracterizada como bruxa, que ilustra uma resenha de três livros sobre a caça às bruxas na Idade Média, publicada na revista literária “Quatro cinco um”, e uma entrevista sobre sua autobiografia.
Sentindo-se atingido – isto é, colocando-se, muito apropriadamente, no lugar dos queimadores de bruxas e de livros – escreveu o sujeito, em alguma rede antissocial:
“Um amigo meu, bem-intencionado, me perguntou hoje se não era hora de mudar de estratégia e chamar a classe artística pra dialogar. Não, absolutamente não. Trata-se de uma guerra irrevogável. A foto da sórdida Fernanda Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal destas pessoas, assim como demonstra a SEPARAÇÃO entre eles e o povo brasileiro. Temos, sim, que promover uma RENOVAÇÃO completa da classe teatral brasileira. É o ÚNICO jeito de criarmos um RENASCIMENTO da Arte no Teatro nacional. Porque a classe teatral que aí está é radicalmente PODRE. E com gente hipócrita e canalha como eles, que mentem diariamente, deturpando os valores mais nobres de nossa civilização, propagando suas nefastas agendas progressistas, denegrindo nossa sagrada herança judaico-cristã, bom – com essa corja”.
É quase chover no molhado dizer que Fernanda Montenegro é um consenso nacional como grande atriz. Até o marechal Castello Branco, primeiro presidente da ditadura, achava isso – e já naquela época.
Além disso, Fernanda vai fazer, agora em outubro, 90 anos de idade – o que, por si só, deveria merecer respeito.
Entretanto, esse débil mental parece seguir o seu chefe: não respeita nada, nem conhece o seu lugar.
O que provocou o estrebucho do diretor da Funarte foi que o obscurantismo, o fascismo, a estupidez, contam com o repúdio geral da “classe teatral”. Certamente, ele considera que Fernanda é a condensação da nossa “classe teatral”.
Ser insultada por um fascista, sobretudo por esses motivos, é mais uma honra que Fernanda pode acrescentar àquelas que já recebeu nestes anos todos.
Sobretudo nessa condição, em que um anormal quer “promover uma RENOVAÇÃO completa da classe teatral brasileira”.
É verdade que isso é uma fantasmagoria nazista, mais do que alguma realidade ou possibilidade. Mas, exatamente por isso, expõe qual é o plano bolsonarista para o teatro: liquidar a “classe teatral”, isto é, liquidar o teatro.
Como seria possível “uma RENOVAÇÃO completa da classe teatral brasileira” sem eliminar a única “classe teatral” que existe no Brasil, proibindo-a de fazer teatro – ou coisa pior?
Na segunda-feira, a solidariedade à Fernanda foi muito além dos que fazem teatro – ia de Nelson Sargento a Ciro Gomes e ao prefeito de São Paulo, Bruno Covas.
Até o presidente da Funarte, Miguel Proença, declarou-se “completamente chocado” com as ofensas expelidas pelo diretor (de Artes Cênicas!) da instituição, em nome da qual enviou as suas desculpas a Fernanda. Além disso, pediu audiência a ministro da Cidadania, Osmar Terra, sob o qual está a Funarte, para “tomar providências”.
A Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR) emitiu nota em que ” repudia veementemente as declarações do diretor de Artes Cênicas da Funarte, Sr. Roberto Alvim, em suas redes sociais, onde classifica o não diálogo com a classe artística como uma “guerra irrevogável.
” Com a mesma intensidade, repudiamos a classificação da fala de dona Fernanda Montenegro como infantil, mentirosa e canalha. É absolutamente inadmissível que uma atriz com a sua trajetória seja atacada em seu livre exercício de expressão.
” Desde que o mundo é mundo, as identidades de todos os povos são construídas através de símbolos, plenos de significados, originando histórias transmitidas de geração em geração. Por este motivo, quando o objetivo é destruir algo, o alvo é sempre o sagrado, o simbólico ou aquilo de maior valor afetivo“.
Fonte: HP