Nossas vidas nas dobras dos raivosos anos vinte

– A política da grande potência encontra-se com o tecno-feudalismo, um recém-publicado guia de Pepe Escobar para a nossa década tormentosa

por Pepe Escobar [*]
morte
O Triunfo da Morte é um afresco na Galeria Regional do Palazzo Abatellis, em Palermo, sul da Itália. A obra, data de cerca de 1446, e o autor é desconhecido.

Acabo de lançar um novo livro, Raging Twenties: Great Power Politics Meets Techno-Feudalism .

A jornada de um livro para encontrar seus leitores é sempre um processo idiossincrático, misterioso e fascinante. Para definir o cenário, permita-me uma breve apresentação retirada da introdução do livro.

Os Raging Twenties começaram com um assassinato:   um ataque com míssil ao General Soleimani no aeroporto de Bagdad em 3 de Janeiro. Quase simultaneamente, esta letalidade geopolítica foi ampliada quando um vírus disparou seus mísseis microscópicos contra toda a humanidade.

pepe escobar

Desde então, é como se o tempo houvesse parado – ou implodido. Não podemos sequer começar a imaginar as consequências da ruptura antropológica causada pelo SARS-CoV-2.

Ao longo do processo, a linguagem foi-se metastatizando, produzindo um cabaz totalmente novo de conceitos. Interruptor de circuito. Biossegurança. Loops de feedback negativo. Estado de exceção. Necropolítica. Novo brutalismo. Neofascismo híbrido. Novo paradigma viral.

Esta nova terminologia coaduna-se com as características de um novo regime, na verdade um modo híbrido de produção: turbo-capitalismo redesenhado como capitalismo rentista 2.0, onde os mamutes do Vale do Silício tomam o lugar de proprietários e também do estado. Esta é a opção “tecno-feudal”, tal como definida pelo economista Cedric Durand.

Esmagados e intoxicados por informações que desempenham o papel de uma dominadora, fomos apresentados a um novo mapa da Distopia – empacotado como um “novo normal” apresentando dissonância cognitiva, um paradigma de biossegurança, a inevitabilidade do trabalho virtual, o distanciamento social como um programa político, a info-vigilância e o transumanismo triunfante.

Um choque sanitário foi sobreposto ao choque económico em curso – onde a financeirização sempre tem precedência sobre a economia real.

Mas então foi apresentado o vislumbre de um futuro róseo rumo a um capitalismo mais “inclusivo”, sob a forma de uma Grande Reinicialização (Great Reset), concebida por uma minúscula oligarquia plutocrática que devidamente auto-proclamou-se como Salvadora.

Todos estes temas evoluem ao longo dos 25 curtos capítulos deste livro, interagindo com o tabuleiro de xadrez geopolítico mais vasto.

O SARS-CoV-2 acelerou o que já era uma guinada do centro de poder do mundo em direção à Ásia.

Desde a Segunda Guerra Mundial, grande parte do planeta tem vivido como dentes de uma engrenagem do sistema tributário, com a potência hegemónica constantemente a transferir riqueza e influência para si própria – através do que o analista Ray McGovern descreve como o SS (security state) impondo a vontade do complexo MICIMATT (Military-Industrial-Congressional-Intelligence-Media-Academia-Think-Tank).

Este sistema mundial está irremediavelmente a desvanecer-se – especialmente devido às interpolações da parceria estratégica Rússia-China. E este é o outro tema dominante deste livro.

Como uma proposta para escapar ao nosso excesso de hiper-realidade, este livro não apresenta receitas, mas sim pistas: configurações onde não há um plano diretor, mas múltiplas entradas e múltiplas possibilidades.

Estas pistas estão enredadas à narrativa de uma possível nova configuração emergente, no ensaio principal intitulado Eurasia, The Hegemon and the Three Sovereigns.

Num diálogo contínuo, o leitor terá Michel Foucault a conversar com Lao Tzu, Marco Aurélio a conversar com Vladimir Putin, a filosofia a conversar com a geoeconomia – tudo isto enquanto tenta desativar a interação tóxica entre a Nova Grande Depressão e as variações da Guerra Fria 2.0.

Com excepção do ensaio principal, trata-se de uma série de colunas, organizadas cronologicamente, originalmente publicadas pelo Asia Times assim como pelo Consortium News/Washington D.C. e pelo Strategic Culture/Moscow, amplamente republicadas e traduzidas por todo o Sul Global.

São provenientes de um nómada global. Desde meados dos anos 90 que vivo e trabalho entre (principalmente) o Oriente e o Ocidente. Com excepção dos primeiros dois meses de 2020, passei a maior parte dos Raging Twenties na Ásia, em terras budistas.

Assim, sentirá que o cheiro destas palavras é inevitavelmente budista, mas em muitos aspectos ainda mais taoista e confuciano. Na Ásia aprendemos que o Tao transcende tudo, pois proporciona serenidade. Há muito que podemos aprender com o humanismo taoísta, não é preciso metafísica.

O ano de 2021 pode ser ainda mais feroz do que 2020. No entanto, nada nos condena a nos perdermos numa selva de espelhos, como Pound escreve:
uma vulgaridade de mau gosto / reinará por todos os nossos dias.

O “segredo” oculto deste livro pode ser realmente um anseio – de que sejamos capazes de reunir nossa força interior e escolher uma trilha taoísta para cavalgar a baleia.

11/Março/2021

[*] Jornalista.

O original encontra-se em asiatimes.com/2021/03/our-lives-between-the-covers-of-the-raging-twenties/

Este artigo encontra-se em https://resistir.infoz

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