COVID-19: Brasil e a necessidade de uma ‘nova solidariedade’

A especialista em saúde brasileira Margareth Dalcolmo diz que a mortalidade induzida por Covid-19 tem um componente social que não pode ser ignorado – as pessoas estão morrendo porque são pobres.

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Margareth Dalcolmo: (A.Pública/Agência Pública)

Margareth Dalcolmo
entrevistada por  Christoph Heuser e Daniel Kopp

Por International Politics and Society

Christoph Heuser e Daniel Kopp: O  Brasil agora responde por mais de um quarto das mortes globais, com muito mais de 3.000 mortes por dia. A Universidade de Washington está prevendo 100.000 mortes apenas em abril. Enquanto isso, o sistema de saúde brasileiro está à beira do colapso. Como a pandemia ficou tão fora de controle aqui?

Precisamos entender a dinâmica da pandemia no Brasil. Covid-19 chegou aqui depois do carnaval do ano passado. Rapidamente entendemos que era grave porque era uma doença com taxa de reprodução acima de um, sinal de que o vírus era altamente transmissível. Aprendemos que não era apenas uma pneumonia atípica, mas uma doença sistêmica. Em março, começamos a ter as primeiras mortes entre idosos e a entender os fatores de risco. Tudo isso fez parte de uma curva de aprendizado intensa e profunda.

Porém, desde o início, também assistimos a um sério antagonismo entre o discurso médico e científico e o governo federal. Isso prestou um grande desserviço à população brasileira porque o governo negou a gravidade da pandemia, as instruções que nós, como profissionais médicos, tentamos transmitir à população e a necessidade de assistência às camadas menos favorecidas da população brasileira, uma vez que o Brasil tem uma população de 13 milhões de pessoas que vivem nas  favelas .

Aliás, eu fiz parte do grupo de apoio ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em março do ano passado. Mas logo depois que ele foi demitido e saiu do Ministério da Saúde, nunca mais conseguimos harmonizar política e ciência. Essa tensão existe quase desde o início e dura até hoje. Não é nada útil. Pelo contrário, piora a pandemia.

Minha projeção imediata é muito pessimista. Eu disse anteriormente que teríamos o março mais triste de nossas vidas e foi o que aconteceu. Acho que abril vai ser ainda pior, e só em maio as coisas têm possibilidade de melhorar.

Qual foi o papel das decisões políticas na criação dessa situação?

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O presidente do Brasil Jair Bolsonaro, à direita, com o presidente dos EUA Donald Trump na Casa Branca, 19 de março de 2019. (Alan Santos, Palácio do Planalto, CC BY 2.0, Wikimedia Commons)

Quando a pandemia atingiu o auge no sudeste do Brasil, ficou claro que o Brasil estava perdendo tempo e energia discutindo tratamentos que a literatura médica já havia demonstrado não funcionavam. O governo investiu uma boa quantia na compra de cloroquina produzida pelo laboratório oficial, que recebia dos Estados Unidos. Naquela época, o presidente Donald Trump descarregava cloroquina no Brasil porque estava proibida lá.

Paralelamente, e isso faz parte do paradoxo brasileiro, o país se preparou para o desenvolvimento de bons estudos de Fase 3 para vacinas: CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer e Johnson. Mas cometemos outro grande erro, pois não negociamos a tempo de receber vacinas de fabricantes que estavam desenvolvendo seus estudos de Fase 3 de alta qualidade aqui. É fato que a Pfizer ofereceu vacinas ao Brasil, e o Brasil não negociou.

Todos os anos, vacinamos 80 milhões de pessoas com a vacina contra a gripe e fazemos isso em seis semanas – são mais de 2 milhões de vacinas por dia. Mas não estamos vacinando agora, porque não temos vacinas suficientes. Cometemos erros nas negociações, erros diplomáticos com a China, embora tenhamos uma cooperação técnica em contrato com a China, os insumos farmacêuticos ativos (IFAs) atrasaram.

As mutações brasileiras do vírus, como o P1 detectado pela primeira vez no Japão de uma família vinda da região amazônica, são uma grande preocupação na Europa e internacionalmente. Quão perigoso é para a região e além? 

P1 não é mais perigoso do que o Reino Unido ou as mutações sul-africanas. No momento, existem três variantes identificadas assim chamadas. Existe também a cepa P2, e agora a variante detectada em Bauru, município de São Paulo, que é muito semelhante à mutação sul-africana. Teremos outros? Possivelmente sim. O SARS-COV2 não é um vírus altamente mutante, mas sofre mutação como todos os vírus. Existem até agora mais de 400 mutações já detectadas, mas a maioria não é preocupante.

A cepa P1 é muito transmissível. Por isso o perfil da doença mudou no Brasil. Já vacinamos uma grande proporção da população idosa, então já podemos observar uma redução de 70% na taxa de internações de idosos. Agora, temos um perfil diferente de jovens adoecendo. Isso significa que a cepa é mais transmissível e a população está deixando suas casas com mais frequência. Se você olhar a média de idade das pessoas que estão hospitalizadas, é muito menor. Muitas pessoas têm menos de 50 anos.

Claro, o Brasil precisa vacinar e conter a pandemia também por causa de preocupações internacionais. Mas temos nossas próprias preocupações sobre as variantes vindas de outros países também. Estamos extremamente preocupados com a variante sul-africana porque a vacina AstraZeneca não oferece proteção contra ela. Estamos menos preocupados com a variante do Reino Unido, pois ela pode ser controlada com a vacina AstraZeneca.

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Vacinação Covid-19 administrada em São Paulo; Sinovac Coronavac (versão brasileira fabricada pelo Instituto Butantan), janeiro de 2021. (Governo do Estado de São Paulo, CC BY 2.0, Wikimedia Commons)

Considerando a infraestrutura do sistema de saúde, você acha que o Brasil estava bem preparado para a pandemia?

O Brasil tinha duas grandes armas para enfrentar a pandemia, que eram nossos serviços públicos de saúde (SUS) e o distanciamento social. O SUS é um sistema extremamente bem concebido e regido pela constituição – a saúde é dever do Estado e um direito de todos os cidadãos que deve ser gratuito, equitativo e universal – e com financiamento estatal. Mas há alguns anos está subfinanciado, com dificuldades para levar recursos a populações já frágeis. Por isso o SUS foi pego de surpresa. Nessa situação, muitos estados chegaram a ter uma espécie de desintegração do SUS. Por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, o último prefeito havia desmontado as clínicas de atendimento à família. Esse foi um grande déficit. No entanto, é uma estrutura importante em todo o país que permitiu a luta contra a pandemia.

Trabalho em uma instituição federal, a Fundação Fiocruz, o maior órgão federal de saúde do país. Temos capacidade para produzir pesquisas importantes, trabalhamos em projetos nacionais e contamos com vários parceiros internacionais. Somos capazes de produzir medicamentos para doenças endêmicas, malária, tuberculose e também vacinas. Fiocruz e Intituto Butantan são as duas instituições públicas da América Latina capazes de produzir vacinas. Oferecemos ao SUS 16 tipos de vacinas para o brasileiro: catapora, sarampo, vacina contra gripe, todas as vacinas para crianças e idosos.

É importante entender tudo isso porque essa é a estrutura que – até certo ponto – manteve a pandemia sob controle. Mas não conseguimos aproveitar todo o potencial do SUS. Por exemplo, poderíamos ter evitado muitas mortes que aconteceram em casa por causa de um erro inicial do governo e da OMS. Eles disseram que as pessoas não deveriam procurar atendimento médico a menos que fosse um caso sério. Se, por exemplo, tivéssemos otimizado a telemedicina – o que estamos fazendo agora – as pessoas poderiam ter usado seu celular para ter contato com médicos e enfermeiras. Talvez pudéssemos evitar muitas mortes, mas isso não foi feito de forma adequada.

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2015: Brasileiros recebendo o teste de microfilária, que deve ser realizado entre 23h e 1h, na porta de um bar em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. (Organização Pan-Americana da Saúde, Flickr, CC BY-NC 2.0)

O senhor levantou um ponto muito importante, já que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, costumava dizer que medidas rígidas contra o vírus não são economicamente viáveis. Claro que isso é cínico, mas o aumento da pobreza é um problema real. Acabamos de publicar um estudo  que mostrou que há 19 milhões de pessoas passando fome no Brasil. Que medidas devem ser adotadas diante dessa conjuntura econômica? 

Sem dúvida, precisamos superar a discussão que vê uma dicotomia entre economia e saúde. Para controlar a pandemia agora, precisamos de distanciamento social e vacinação em massa. Para isso, precisamos manter as pessoas em casa. Como podemos manter as pessoas em casa? É fácil para as pessoas de classe média, para minha família, para sua família. Mas para as pessoas que moram em bairros pobres, não é fácil. Eles vivem principalmente da economia informal.

Quando a primeira onda atingiu, estava claro para nós o que precisava acontecer: o governo deveria ter começado a fornecer a chamada ajuda emergencial para manter a população de baixa renda à tona. Ficou claro que se não ajudássemos essas pessoas a situação se tornaria muito mais trágica. O Brasil é um país com uma concentração de renda inaceitavelmente alta. A diferença entre quem tem e quem não tem é simplesmente inacreditável.

“O governo deveria ter começado a fornecer a chamada ajuda emergencial para manter a população de baixa renda à tona”.

Mas rapidamente ficou claro que não haveria ajuda de emergência suficiente do governo porque era vista como uma medida econômica. Já disse várias vezes que não há dicotomia entre saúde e economia – é a mesma coisa. Ajudar pessoas que não têm renda é uma medida de saúde pública, não econômica. Se as pessoas no Brasil precisam decidir entre morrer de fome ou de vírus, isso simplesmente não é aceitável.

Ajudar pessoas que não têm renda é uma medida de saúde pública, não econômica.

Em algum momento, a ajuda emergencial que o governo deu durante cinco ou seis meses acabou. Ele foi reativado este mês, mas com um valor bem menor. No início rondava os € 100, agora é menos de metade. Isso não dá nem para comer por um mês.

Em São Paulo, a maior rede hospitalar, todos os leitos estão lotados. Existem filas, pessoas esperando para serem admitidas. No Rio de Janeiro e em outras capitais é a mesma coisa. A situação que vivemos agora é tão aguda quanto durante o pico de meados do ano passado. Mas é pior por causa do fator social, o cansaço das pessoas diante de uma pandemia que já dura mais de um ano.

Quais são suas expectativas da comunidade internacional para garantir que mais vacinas cheguem ao país e à região? O que você acha da proposta de dispensar patentes relacionadas a vacinas? 

No momento, estamos em uma situação difícil porque não há vacinas à venda. O Brasil se inscreveu na unidade COVAX da OMS e negociamos vacinas para apenas 10% da população. Isso foi um erro, devíamos ter negociado 30 ou 40 por cento através da COVAX. Além disso, ainda não recebemos uma única vacina da COVAX. Por quê? Veja a Europa.

Os sistemas internacionais não funcionam bem o suficiente. A pandemia Covid-19 realmente revelou sua obscenidade. A desigualdade social global é simplesmente escandalosa. Se 10 países comprarem 75% de toda a produção global de vacinas em 2021, isso será escandaloso. Mas em Portugal, Alemanha, França, também é uma catástrofe. Na França, por exemplo, eles têm muitas vacinas, mas não têm a agilidade que o Brasil teria para vacinar.

“A desigualdade social global é simplesmente escandalosa.”

Dito isso, a comunidade internacional pode ajudar. Para dar um exemplo simples: os Estados Unidos têm milhões de doses da vacina AstraZeneca que não estão usando porque o FDA não a aprovou. Portanto, é fundamental que o Brasil negocie a doação dessas vacinas excedentes. Entendemos que os Estados Unidos vão vacinar sua própria população primeiro. Mas eles não estão usando a vacina AstraZeneca – e nós estamos. Poderíamos estar negociando isso agora.

Sobre a questão das patentes: o Brasil está discutindo com a OMS sobre isso. Claro, o Brasil tem experiência em quebrar patentes de medicamentos anti-retrovirais contra HIV / AIDS, o que tornou mais fácil conduzir um programa nacional de AIDS de alta qualidade. Portanto, não sou apenas a favor da discussão, mas de realmente quebrar as patentes. No entanto, isso não resolverá os problemas de hoje. Mesmo que possamos quebrar as patentes, leva tempo para aumentar a fabricação. Não é um processo fácil e rápido. Essa será uma solução para o próximo ano, não é uma solução para o futuro imediato, quando precisarmos melhorar o lançamento.

No momento, há discussões sobre a compra de vacinas pelo setor privado no Brasil. Como você avalia o papel do setor privado?

Agora precisamos vacinar muita gente e muito rápido. O Brasil é um país enorme. Existem regiões de difícil acesso e aqui o setor privado pode ajudar. No entanto, somos contra a compra de vacinas pelo setor privado, tem que ser feito institucionalmente. Como está previsto na constituição, o SUS tem que ser o comprador.

Mas o que o setor privado pode fazer é financiar a logística. Perguntamos a todos os municípios do Brasil e recebemos uma taxa de resposta de 99% sobre o que eles precisam. Tem municípios que precisam de avião, avião que pode pousar em pequenas pistas de pouso, outros precisam de geladeiras, freezers, computadores, caixas térmicas, motos, barcos. Tudo isso está sendo organizado da melhor maneira. Mas precisamos das vacinas, esse é o problema que precisamos resolver.

Você está otimista de que ainda podemos alcançar a solidariedade internacional no que diz respeito à pandemia?

Não há como contornar isso. A comunidade internacional tem que revisar conceitos antigos. Covid-19 é um fenômeno que mudou nossas vidas. Costumo dizer que é como AC e BC: vivemos em um mundo definido por After Covid e Before Covid, e nada será o mesmo novamente. Não é como outros vírus, como o H1N1. Conseguimos conter isso, produzimos uma vacina e vacinamos todos os anos. O SARS Covid-2 não desaparecerá, permanecerá endêmico. Terá que haver vacinas e as vacinas terão que ser melhoradas e melhoradas. A atual onda de vacinas são apenas vacinas de primeira geração. Muito rapidamente, haverá novas gerações que cobrirão as variantes que estão surgindo, particularmente as vacinas de RNA mensageiro que são muito fáceis de recompor.

Mas, tirando isso, precisamos ter uma maneira diferente de ver o mundo. A mortalidade induzida por Covid-19 tem um componente social que não pode ser ignorado – as pessoas estão morrendo porque são pobres. Mesmo em uma cidade rica como Nova York, 40% das mortes foram de pobres e negros Isso é insuportável. No Brasil, as taxas de mortalidade em comunidades pobres serão muito maiores do que entre as pessoas de classe média e alta. Isso requer uma nova qualidade de solidariedade, nacional e internacionalmente.

Não tenho dúvidas de que o mundo exige isso: os acadêmicos, os filósofos, os intelectuais, os líderes comunitários, as comunidades de fé precisam estar ligados nesta discussão. Covid-19 é um fenômeno que mudou nossas vidas, mas também serviu para trazer algum tipo de esperança por uma nova qualidade de solidariedade.

Margareth Dalcolmo é pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, um dos mais importantes órgãos de saúde do Brasil, com experiência na condução e participação em protocolos de pesquisa clínica e tratamento da tuberculose e outras micobacterioses. É membro do Comitê Consultivo em Tuberculose do Ministério da Saúde. Ela também é membro do Grupo de Especialistas da OMS para a Lista de Medicamentos Essenciais e do Comitê Consultivo Regional do Banco Mundial para projetos de saúde na África Subsaariana sobre Tuberculose e doenças respiratórias ocupacionais.

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