Os trabalhadores estão em marcha – a nova guerra de classes da América

greve

Por Chris Hedges 

Há uma última esperança para os Estados Unidos. E não está nas urnas de voto. Está na organização sindical e greves de trabalhadores da Amazon, Starbucks, Uber, Lyft, John Deere, Kellogg, na fábrica Special Metals em Huntington, West Virginia, propriedade da Berkshire Hathaway, na Northwest Carpenters Union, na Kroger, bem como de professores em Chicago, West Virginia, Oklahoma e Arizona, trabalhadores de fast-food, centenas de enfermeiras em Worcester, Massachusetts, e os membros da International Alliance of Theatrical Stage Employees.

Trabalhadores organizados, muitas vezes desafiando as suas tímidas lideranças sindicais, estão em marcha pelos Estados Unidos. Mais de quatro milhões de trabalhadores, cerca de 3% da força de trabalho, principalmente de serviços de hotelaria e alimentação, saúde e assistência social, transporte, habitação e serviços públicos, abandonaram o trabalho, rejeitando salários baixos e condições de trabalho punitivas e arriscadas.

Há um consenso crescente – 68% numa sondagem recente da Gallup, com este número subindo para 77% entre os 18 e 34 anos – de que a única maneira que resta para alterar o equilíbrio de poder e forçar concessões da classe capitalista dominante é mobilizar e fazer greve, embora apenas 9% da força de trabalho dos EUA seja sindicalizada. Esqueçam os Democratas preocupados com questões sociais. É uma guerra de classes.

A questão, como Karl Popper nos lembrou, não é como fazer com que pessoas boas governem. A maioria dos que são atraídos pelo poder, figuras como Joe Biden, são na melhor das hipóteses medíocres e muitos, como Dick Cheney, Donald Trump ou Mike Pompeo, são venais. A questão é, sim, como organizamos as instituições para evitar que líderes incompetentes ou ruins nos prejudiquem. Como podemos colocar poder contra poder?

O Partido Democrata não promoverá o tipo de reforma radical do New Deal que na década de 1930 tanto evitou o fascismo como o comunismo. O seu teatro político vazio, que remonta ao governo Clinton, estava em plena exibição em Atlanta quando Biden pediu a revogação da obstrução à aprovação do Freedom to Vote Act e o John Lewis Voting Rights Advancement Act, sabendo que suas hipóteses de êxito eram zero. O candidato democrata a governador da Geórgia, Stacey Abrams, juntamente com vários grupos de direitos de voto do Estado, boicotou o evento numa censura muito pública. Eles estavam perfeitamente cientes da manobra cínica de Biden. Quando os Democratas eram minoria, agarravam-se à obstrução como um bote salva-vidas. O então senador Barack Obama, juntamente com outros Democratas, fez campanha para que ele permanecesse no cargo. E há alguns dias, a liderança Democrata usou a obstrução para bloquear a legislação proposta pelo senador Ted Cruz.

Os democratas têm sido parceiros plenos no desmantelamento da nossa democracia, recusando-se a banir o “dark money” (dinheiro de origem secreta, para fins políticos nos EUA, legal e isento de impostos) e dinheiro das grandes empresas nos processos eleitorais e governo, como Obama fez por meio de ações executivas presidenciais, agências de “orientação” e outras questões de regulação do “dark money” que ignoram o Congresso. Os Democratas, que ajudaram a lançar e perpetuar as nossas guerras sem fim, também foram co-arquitetos de acordos comerciais como o NAFTA, vigilância ampliada sobre os cidadãos, polícia militarizada, o maior sistema prisional do mundo e uma série de leis antiterrorismo, como a Special Administrative Measures (SAM) que retira quase todos os direitos, incluindo o devido processo legal e privilégio advogado-cliente, para permitir que suspeitos sejam condenados e presos com provas secretas que eles e seus advogados não têm permissão para ver.

O impressionante desperdício de recursos para fins militares – 777,7 bilhões de dólares num ano – aprovado no Senado com 89 votos contra 10 e na Câmara de Representantes com 363 votos contra 70, juntamente com os 80 bilhões gastos anualmente nas agências de serviços secretos, tornou os militares e os serviços secretos, muitos administrados por empresas privadas, como a Booz Allen Hamilton, quase omnipotentes. Os democratas há muito tempo que abandonaram trabalhadores e sindicatos. A governadora Democrata do Maine, Janet Mills, por exemplo, vetou um projeto de lei que permitiria que os trabalhadores agrícolas no seu Estado se sindicalizassem. Em todas as grandes questões estruturais, não há diferença entre os republicanos e os democratas.

Quanto mais tempo o Partido Democrata passar sem realizar reformas reais para melhorar as dificuldades econômicas, exacerbadas pelas altas taxas de inflação, mais alimenta a frustração de muitos de seus apoiantes e a apatia generalizada (há 80 milhões de eleitores, um terço do eleitorado, que não vota) e o ódio às elites “liberais” alimentadas pela seita de Donald Trump no Partido Republicano. O pacote para infraestruturas designado, “Build Back Better”, quando se leem as letras miúdas, é mais uma infusão de milhares de milhões de dólares do governo para as contas bancárias das grandes empresas. Isso não deve surpreender ninguém, dado quem são elas que financiam e controlam o Partido Democrata.

O sofrimento e a instabilidade que assola pelo menos metade do país que vive em dificuldades financeiras, alienado e privado de direitos, perseguido por bancos, empresas de cartão de crédito, empréstimos estudantis, serviços públicos privatizados, economia de empregos precários, sistema de saúde com fins lucrativos de que resultou um quarto de todas as mortes mundiais [1] por Covid-19 – embora sejamos menos de 5% da população mundial – e empregadores que pagam aos trabalhadores salários de escravos e não fornecem benefícios, está a piorar.

Biden presidiu à perda de benefícios alargados no desemprego, assistência ao aluguel das habitações, tolerância para empréstimos estudantis, cheques de emergência, moratórias sobre despejos e agora o fim do alargamento dos créditos fiscais para crianças, tudo à medida que a pandemia aumentava de novo. O lidar com a pandemia, do ponto de vista sanitário e econômico, é mais um sinal da profunda decadência do império. Os americanos que não têm seguro ou que são cobertos pelo Medicare, geralmente trabalhadores da linha de frente [2], não são reembolsados pelos testes de Covid que compram sem receita.

O Supremo Tribunal – cinco dos juízes foram nomeados por presidentes que perderam no voto popular – também bloqueou a administração Biden para impor um mandato para vacinas ou testes em grandes empresas. No horizonte, alimentadas pelas consequências econômicas da pandemia, estão grandes incumprimentos no pagamento de empréstimos e outra crise financeira. Quanto pior as coisas ficam, mais desacreditado se torna o Partido Democrata e seus valores democráticos “liberais” e mais prosperam os fascistas cristãos à espreita nos bastidores.

Como a história provou repetidamente, os trabalhadores organizados, aliados a um partido político dedicado aos seus interesses, são a melhor ferramenta para se oporem aos ricos. Nick French, num artigo na Jacobin, baseia-se no trabalho do sociólogo Walter Korpi, que examinou a ascensão do Estado de bem-estar sueco no seu livro ‘The Democratic Class Struggle. Korpi detalhou como os trabalhadores suecos “construíram um movimento sindical forte e bem organizado nas indústrias e unido numa federação sindical central, a Landsorganisationen (LO), que trabalhou em estreita colaboração com o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Suécia (SAP)”.

A batalha para construir o Estado de bem-estar exigia organização – 76% dos trabalhadores eram sindicalizados – ondas de greves, atividade sindicalista militante e pressão política do SAP. “Medida em termos do número de dias de trabalho por trabalhador”, escreve Korpi, “do princípio do século até ao início da década de 1930, a Suécia teve o mais alto nível de greves e bloqueios entre as nações ocidentais”. De 1900 a 1913, como observa French, “houve 1 286 dias de paralização devido a greves por mil trabalhadores na Suécia. De 1919-38, houve 1 448.” (Em comparação, nos Estados Unidos no ano passado, de acordo com dados do National Bureau of Economic Research, houve menos de 3,7 dias de greve por mil trabalhadores.

Há poucos terceiros partidos, incluindo o Partido Verde, a Alternativa Socialista e o Partido Popular, que oferecem esta oportunidade [3]. Mas os Democratas não vão nos salvar. Eles venderam-se à classe multimilionária. Só nós nos salvaremos.

Os sindicatos rompem as divisões políticas, reunindo trabalhadores de todas as convicções políticas para combater um inimigo oligárquico e corporativo comum. Uma vez que os trabalhadores começam a exercer o poder e a extrair reivindicações à classe dominante, a luta educa os coletivos sobre as reais configurações de poder e mitiga os sentimentos de impotência que levaram muitos aos braços dos neofascistas. Por isso, capitular ao Partido Democrata, que traiu mulheres e homens trabalhadores, é um erro terrível.

A pilhagem voraz das elites, muitas das quais financiam o Partido Democrata, acelerou desde o colapso financeiro de 2008 e a pandemia. Os bancos da Wall Street registaram lucros recorde em 2021. Como observou o Financial Times, lucraram com os empréstimos do FED e com fusões e aquisições. Alavancados com cerca de 5 bilhões de dólares de gastos do FED desde o início da pandemia, lavaram os seus lucros, como Matt Taibbi salienta, em enormes bônus salariais e recompras de ações.

“A maior parte dessa nova riqueza está sendo convertida em remunerações para um punhado de executivos”, escreve Taibbi. “As recompras de ações também foram excessivas nas empresas de armamentoprodutos farmacêuticospetróleo e gás, tendo tido todas também o seu segundo ano consecutivo recorde em lucros vertiginosos. Há agora cerca de 745 multimilionários nos EUA, que coletivamente viram seu património líquido crescer cerca de 2,1 bilhões para 5 bilhões desde março de 2020, com quase todo este aumento de riqueza vinculado ao balanço patrimonial do FED”.

A Kroger é típica. A corporação, que opera cerca de 2 800 lojas sob diferentes nomes, incluindo Baker’s, City Market, Dillons, Food 4 Less, Foods Co., Fred Meyer, Fry’s, Gerbes, Jay C Food Store, King Soopers, Mariano’s, Metro Market, Pay-Less Super Markets, Pick’n Save, QFC, Ralphs, Ruler e Smith’s Food and Drug, tiveram US$4,1 bilhões de lucros em 2020. No final do terceiro trimestre de 2021, tinham US$2,28 bilhões em caixa, um aumento de US$399 milhões no primeiro trimestre de 2020. O CEO da Kroger, Rodney McMullen, ganhou mais de US$22 milhões, quase duplicando os US$12 milhões que ganhou em 2018. Isso é mais de 900 vezes o salário do trabalhador médio da Kroger. A Kroger nos três primeiros trimestres de 2021 também gastou cerca de 1,3 bilhões em recompras de ações.

“A Kroger é para 86% de seus trabalhadores a sua única fonte de rendimento”, revelou a Economic Roundtable numa sondagem aos trabalhadores da empresa. “Trabalhar a tempo integral para ganhar um salário mínimo que compensasse as necessidades básicas, exigiria que a Kroger pagasse 22 dólares por hora para um salário anual de 45.760 dólares. Os ganhos médios anuais dos trabalhadores da Kroger, no entanto, equivalem a 29.655 dólares. Isto é 16.105 dólares abaixo do necessário para pagar as necessidades básicas. Mais de dois terços dos trabalhadores da Kroger lutam pela sobrevivência devido aos baixos salários e horários de trabalho a tempo parcial. Nove em cada dez trabalhadores da Kroger relatam que os seus salários não aumentaram tanto quanto o aumento das despesas básicas, como alimentação e habitação. Desde 1990, os salários dos atendedores mais experientes na parte de alimentação da Kroger caíram 22% (ajustados pela inflação) nas três regiões pesquisadas. Em todo o setor de supermercados, 29% da força de trabalho está abaixo ou perto do limite federal de pobreza”.

Mais de um terço (36%) dos 10.000 funcionários das lojas da Kroger no sul da Califórnia, Colorado e Washington disseram estar preocupados com o despedimento. Mais de três quartos (78%) têm insegurança alimentar. Um em cada sete trabalhadores da Kroger ficaram sem-abrigo no ano passado. Quase 1 em cada 5 (18%) trabalhadores da Kroger disseram que não pagaram a hipoteca do mês anterior a tempo.

Mais de 8.000 funcionários sindicalizados da King Soopers da Kroger entraram em greve em 12 de janeiro no Colorado, exigindo salários mais altos e melhores condições de trabalho da maior rede de supermercados e o quarto maior empregador privado do país. É aqui que se encontra uma das linhas de frente emergentes da luta de classes. É onde devemos investir nosso tempo e energia.

Nossa democracia capitalista foi desde o início manipulada contra nós. O Colégio Eleitoral permite que candidatos presidenciais como George W. Bush e Trump percam no voto popular, mas assumam o cargo. A atribuição de dois senadores por Estado, independentemente da população do Estado, significa que 62 senadores representam um quarto da população, enquanto seis representam outro quarto. Os pais fundadores marginalizaram e oprimiram mulheres, nativos americanos, afro-americanos e homens sem propriedade. A maioria dos cidadãos foi intencionalmente excluída do processo democrático pelos governantes aristocratas brancos do sexo masculino, a maioria deles proprietários de escravos.

Todas as aberturas na nossa democracia foram o resultado de uma prolongada luta popular. Centenas de trabalhadores foram assassinados, milhares ficaram feridos, dezenas de milhares foram colocados na lista negra nas nossas guerras trabalhistas, as mais sangrentas de qualquer país industrializado. Abolicionistas, sufragistas, sindicalistas, jornalistas militantes e os que nos movimentos contra a guerra e pelos direitos civis abriram nosso espaço democrático. Esses movimentos radicais foram reprimidos e impiedosamente desmantelados no início do século XX em nome do anti-comunismo. Eles foram novamente alvo das elites corporativas após o surgimento de novos movimentos de massa na década de 1930.

Esses movimentos populares, que novamente ressurgiram nos anos 1960, moveram-nos, passo a passo, sangrentos, em direção à igualdade e à justiça social. A maioria dos ganhos obtidos na década de 1960 foi revertida sob o ataque do neoliberalismo, desregulamentação e um sistema corrupto de financiamento de campanhas legalizado por decisões judiciais como a Citizens United, que permite aos ricos e grandes empresas financiarem eleições para selecionar líderes políticos e impor a legislação. A encarnação moderna dos barões ladrões do século XIX, como Jeff Bezos e Elon Musk, cada um valendo cerca de 200 bilhões de dólares, convoca-nos às nossas raízes radicais.

A luta de classes define a maior parte da história humana. Marx acertou. Não é uma história nova. Os ricos, ao longo da história, encontraram maneiras de subjugar e tornar a subjugar as massas. E as massas, ao longo da história, despertaram ciclicamente para se livrarem de suas correntes.

NT
[1] Estes valores têm variado no tempo. Dados recentes apontam para cerca de 16 a 17%.
[2] Trabalhadores industriais e de serviços que enfrentam uma variedade de riscos de saúde nos seus locais de trabalho.
[3] V. também https://www.workers.org/

18/Janeiro/2022

[*] Jornalista vencedor do Prémio Pulitzer e apresentador do RT On Contact, uma série de entrevistas semanais sobre política externa dos EUA, realidades econômicas e liberdades civis na sociedade americana. É autor de 14 livros, incluindo vários best-sellers do New York Times.

Fonte: scheerpost.com

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